domingo, 25 de abril de 2010

Entrevista com Gas-pa e Mimil, do coletivo Lutarmada

Entrevista publicada na edição número 26 do VQ impresso, com Gas-pa e Mimil, integrantes do Coletivo de Hip Hop Lutarmada.

O surgimento do LUTARMADA
Gas-pa - Tinha uma galera aqui no Morro da Lagartixa que se reunia todos os domingos na casa de um parceiro, para beber cerveja e escutar rap. Eu tenho uma formação no hip-hop lá da virada de 1989, quando o hip-hop era majoritariamente combativo. Como vejo este forte teor político no hip-hop, propus à galera que a gente continuasse se reunindo. Mas a cerveja e o rap viriam depois de um filme que refletisse a nossa realidade ou a realidade de um povo parecido com o nosso, gerando debates sobre nosso cotidiano. A galera gostou da idéia e começamos a fazer isso. Na verdade, eu já propus com segundas intenções. Sempre sonhei com uma organização de hip-hop como foi o movimento punk nos anos 1970 e 1980, para que a gente pudesse intervir na comunidade da gente.

Dois filmes foram determinantes para a formação do Luta Armada. O primeiro foi o Black Panters, com a reflexão sobre a possibilidade de intervenção de um grupo de jovens na sociedade. Fala da organização que nasceu da rebeldia de dois jovens e virou o partido de esquerda de maior expressão dos EUA, tudo com um corte racial muito forte. Depois foi o Lamarca. Nesse filme há uma fala do Lamarca, voltando do Canal do Suez, quando toma consciência de classe, onde há uma viatura militar vindo logo atrás de um pau de arara. Na cena, ele começa a reparar naquele povo, um monte de bóia fria indo trabalhar e diz: “o milagre brasileiro ainda não chegou aqui, a gente precisa arrumar um jeito de ajudar nosso povo a enxergar as condições miseráveis em que vive”. Isso não é muito diferente da realidade da nossa vizinhança. Nosso povo está tão habituado a viver nessas condições, que parece não saber o que é viver com mais dignidade. No debate, chegamos à conclusão de que é possível fazer as pessoas enxergarem um mundo além de exploração, competição, violência e indignidade. Então, a fala do Lamarca foi muito importante.

A partir disso, propus que a gente se organizasse, com um objetivo além da música. Falei: “beleza, a gente tem esse intuito de chamar o povo pra reagir, mas só com a música não dá”. Olha só quantas armas a classe dominante tem contra gente: a televisão, a revista, a música, a escola, a igreja, o exército, a polícia. Temos que transpor a barreira da arte e atuar em outras frentes. E daí ficou Luta Armada. Isso faz três anos e devíamos ser umas 15 pessoas. Hoje, nós contamos com mais gente. Fizemos uma carta de princípios, que chamamos de bilhete de princípios, porque é muito pequenininho. Não queríamos colocar ninguém em camisa de força.

O ponto principal é a constante busca e a socialização da informação. Mas, como socializar essa informação? Começamos a organizar palestras aqui na comunidade e outras atividades artísticas para provocar debates. O que fazíamos com os filmes apenas entre nós, passamos a fazer para comunidade. Por exemplo, há um evento anual, o “Hip-hop ao trabalho”, no qual a gente junta as quatro artes do hip-hop, esporte de ação, basquete, trançagem (sic) de cabelo. A partir disso discutimos a relação de trabalho nos nossos dias.

Não podemos perder de vista que somos um grupo cultural, mas somos diferentes por conta de um compromisso com a revolução. Partir para a ação, pra gente, significa isso.


Mimil - Conheci o Luta Armada no “Hip-hop ao trabalho”. Lá, vi o Gas-PA cantando e depois fui apresentada a ele pelo Flávio, um amigo meu, também fundador do Luta Armada. Gas-PA me perguntou se eu gostava de ler e me emprestou o livro Capitalismo para principiantes. Li o livro, gostei e peguei outros com ele, quando me perguntou se eu queria entrar no Luta Armada. Antes eu ouvia todo tipo de música e quando ouvi rap pela primeira vez falei: “essa música é que é boa”. Conheci o hip-hop e estou começando a grafitar. Minha formação política começou por causa do coletivo. O primeiro livro político que eu li foi o que Gas-PA me emprestou.

Não tinha ouvido falar em rap e percebi que era uma coisa diferente. O cara falava da realidade, falava do que acontece quando você usa drogas. O funk só fala que é bom e o rap não. Achei isso maneiro e comecei a curtir.

Gas-PA- Comecei a prestar mais atenção no rap, porque também mexia mais comigo. Eu andava de bike e rap é uma música comum entre os que praticam o esporte. Em 1991, o Public Enemy, referência no rap mundial, fez um show em São Paulo. Eu nunca tinha saído do Rio. Fui para São Paulo e fiquei impressionado como o hip-hop já tinha uma força, como o movimento era grande por lá e fazia parte do cotidiano das pessoas. Soube que existia todo um universo em torno do movimento que eu desconhecia.

Comecei a pesquisar, vi que era aquilo que eu queria e hoje o hip-hop é responsável pela minha consciência. Costumo dizer que eu sou preto desde 1991. Antes eu era qualquer coisa. Pretos eram meus amigos mais escuros do que eu, vítimas de um monte de piadas minhas.

Comecei a questionar o porquê daqueles caras, que eram como eu, falarem tantas coisas desconhecidas para mim e o porquê do discurso deles ser tão articulado.


Gás-PA- No meu caso, o fator étnico é bem presente. O rap nasceu do Dub. Um cara tocava Dub na Jamaica e o levou pra Nova York. Não pegou do jeito que ele esperava, então ele fez os improvisos em cima do funk e do soul. Essa coisa étnica, dos ritmos vindos da África, não tem como não tocar a gente.

O que é chamado de funk no Rio de Janeiro só é predominante aqui. Em outras regiões do Brasil, a grande mídia faz um esforço tremendo para que ele faça sucesso. Em São Paulo, por exemplo, o hip-hop é muito forte e o funk quase não tem espaço. E o rap comercial, que está na grande mídia, tem muito peso, é o que mais toca em todo lugar.

Todo movimento sério sofre deformações da mídia. O MST, por exemplo, é a mesma coisa. Desmoralizar esses movimentos é importante para deixá-los mais fracos. Com a força do movimento nos EUA, o governo americano e a mídia americana começaram a prestar atenção no hip-hop.

George Bush, o pai, então presidente, se reuniu na Casa Branca com o grupo NWA, que era a maior expressão do gangster rap na época. A partir desse encontro a indústria fonográfica passou a investir pesado nesses grupos do gangster rap.

Aquele discurso de “vamos nos unir pra lutar contra opressão” deu lugar ao “sou da Costa Leste e vou dar um tiro no outro que é da Costa Oeste”. Veio o rap ostensivo, com carrão, jóias caras, iates, mansões, muita ostentação. Inclusive a mulher acabou sendo mais um objeto de ostentação. Grupos como o Public Enemy acabaram sendo esquecidos pela grande mídia e, conseqüentemente, pela grande massa.

Tem uma galera no Brasil fazendo um rap mais combativo. Pelo que eu sei, o Brasil é um dos lugares onde isso é mais forte. Já escutei isso do líder do Public Enemy. É a periferia mesmo que vai ser sempre o lugar desse hip-hop combativo, não tem como nascer em outro lugar.

Eu sou um admirado do sampler. Acho que samplear é uma arte. É mais do que pegar uma música e sair cantando em cima. As pessoas acham que não existe criação ali. Mas tem que procurar uma música que combine com o tema, fazer uma pesquisa, já que você tem que causar emoção por meio daquela música.

Mimil- As músicas que eu canto mostram bastante a realidade e tentam chamar a atenção das pessoas pra isso. A música “O bonde da revolução" chama a pessoa pra esse movimento de mudança. Uma das músicas que mais gosto de cantar é:

“Brotando do chão da periferia
A indignação se transforma em poesia
Que desvenda os olhos
E destapa os ouvidos
Pra fatos esquecidos ou que estavam escondidos
Como a guerrilha do Araguaia no regime militar
Pedaço da nossa história que a imprensa não pôde contar
Hass Sobrinho, Osvaldão, Elza Monerat
Quando ouvir nosso som você vai se lembrar
Dos pretos estadunidenses
No instante seguinte
Ao assassinato do pastor Martin Luther King
Vai lembrar do seqüestro do embaixador suíço
Trocado por 70 presos políticos
Dos quartéis, dos presídios direto pro exílio
E no Chile de Allende foram acolhidos
Obra assinada pela VPR de Lamarca, companheiro de Iara Iavelberg”


Sobre violência policial nas comunidades
Gas-pa canta: “Sexo masculino, descendente africano, jovem, entre 15 e 21 anos, se você se enquadra nessa descrição, fique ligado irmão porque eles estão a sua intenção”.

Mimil - A polícia está muito violenta hoje em dia e isso é visto como natural. Lembro da última operação na Favela da Coréia, onde morreram 12 pessoas. Uma repórter entrevistou o comandante da operação e perguntou se ele achou a operação foi bem sucedida. Ele disse que não podia chamá-la de bem sucedida, já que foram perdidas duas vidas. Aí a repórter perguntou: “Mas não morreram 12?”. Ele respondeu: “É, morreram 12, mas dez eram bandidos. Perdemos um policial e uma criança”. Quer dizer, bandido não é ser humano.

Eles investem maciçamente para que o resto da população aceite essa violência, seja sentindo medo, seja achando bom. Esse filme Tropa de Elite é um exemplo. Eu conheço gente aqui no morro que acha o filme maneiro, porque acha bonito ver o BOPE matando os bandidos, mas não lembra o que acontece quando eles vêm aqui. A porta da minha casa está lá quebrada, a gente só encosta, porque a policia entrou um dia aqui e colocou a porta no chão, sem mais nem menos.

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