segunda-feira, 22 de outubro de 2012

VQ // 45 // Memória

De creches e primaveras nas fábricas

Em 1993 despertei o interesse em estudar as raízes da industrialização no país, particularmente a presença de creches no interior das fábricas. A motivação está no fato de ser filha de operários e no resgate dos aspectos políticos e sociais ligados a essa iniciativa

Aos meus pais, Maury e Alzira, em memória, e aos meus irmãos Maury, Mauro, Marcilio, Getúlio e Marlene, em respeito ao que me possibilitaram ser

Por Marilda Vivas
Ilustração: João Paulo Maia


É interessantes dar sequência ao resgate da memória das indústrias têxteis valencianas, como forma de buscar compreender uma parte daquilo que é fundamental na formação de alguns milhares de valencianos. É um tema amplo e que comporta múltiplas facetas.

Nesse caso, sendo filha de operários, o que proponho é resgatar aspectos políticos e sociais ligados às construções de creches nas indústrias fabris. A motivação está no fato de termos sido, minha irmã e eu, “acolhidas” em uma delas, a da Cia. Progresso de Valença, em meados da década de 1950, no horário correspondente ao turno de trabalho de nossa mãe.

Foi em 1993, durante o curso de Metodologia do Ensino Superior, na FAA, que despertei interesse por estudar as raízes da industrialização no país e, particularmente, o sentido real da presença de creches no interior das fábricas. Até então desconhecia que dentro da realidade brasileira, as creches foram surgindo afinadas com a evolução da economia capitalista no país, em cujo rastro veio desabrochar os processos de urbanização e a expansão das atividades industriais e do setor de serviços, por essas paragens. E, também, que foi em função desse desenvolvimento e da consequente inserção feminina no mercado de trabalho que surgiu, por assim dizer, a necessidade de se criar locais onde as crianças pudessem ficar durante o período em que os pais se dedicavam ao trabalho.

Da parte do Estado, o que se tinha era uma completa omissão sobre essa questão. As poucas creches que existiam fora das indústrias, nas décadas de 1920 a 1950, eram de responsabilidade de entidades filantrópicas laicas e principalmente religiosas. Em sua maioria, estas entidades foram, com o tempo, passando a receber ajuda governamental para desenvolver seu trabalho, além de donativos doados por famílias mais ricas.

Embora mamãe reconhecesse nesse atendimento um aspecto vantajoso de seu trabalho, a verdade é que onde ela via cuidado, o capital industrial obtinha lucro através de uma produção mais eficaz de sua parte, visto que ela podia se dedicar mais e melhor ao trabalho sabendo que suas filhas estavam próximas de si, cuidadosamente “assistidas” pela mesma empresa que a empregara! Não havia como entender, em uma época de parcos estudos e de grandes privações, que sua inserção contraditória no mercado de trabalho respondia, tão somente, a uma situação criada pelo próprio sistema econômico? Isso era coisa que nem de longe se percebia. Não só ela como todas as demais mulheres e homens que se viram imersos nessa mesma situação. Não havia muito como entender (ou perceber) que o foco patronal estava em impedir a construção espontânea do proletariado enquanto classe e que a prática dos patrões consistia em criar e conceder benefícios sociais como meio de disciplinar e de controlar suas vidas, dentro e fora do ambiente de trabalho. E que, tal como as creches, pelos mesmos motivos foram sendo construídas, no entorno das fábricas, as vilas operárias, algumas com creches e escolas maternais (para seus filhos), os clubes esportivos (para seus pais) e as atividades festivas, como os piqueniques, para toda a família.

Olha, foi um choque tremendo para ela quando conversamos sobre isso. Até então, todos esses “benefícios” foram tidos como sendo um aspecto positivo surgido em meio a tantas e tantas privações pelas quais passavam a classe operária no Brasil. E não deixou de ser. Tanto assim que sempre me agradou a ideia de saber que, mesmo no trabalho, ela estava sempre por perto. E ai, quando senti, pela sua reação, que eu havia metido os pés pelas mãos, tratei logo de amaciar a conversa, pondo um fim no assunto, embora saiba que alguma coisa se rompeu.

Curioso é que quando tivemos essa conversa, as reivindicações por creches já haviam se solidificado como um direito do trabalhador e um dever do Estado. E tudo graças, justamente, à entrada das mulheres no mercado de trabalho a partir da expansão do capitalismo e da industrialização. Hoje, por exemplo, muitos dos avanços que observamos na Educação de crianças de zero a seis anos foram conquistas dos movimentos de operários e de mulheres, que lutaram por melhorias nas creches e pré-escolas e para que as mesmas passassem a ter um atendimento educacional e não mais assistencial, como no tempo de minha mãe.

Rupturas no sitema
Sabemos que o ano de 1968 é tido como aquele que trouxe a possibilidade histórica da ruptura com os valores e mecanismos da reprodução social, próprios do capitalismo. Por essa ocasião, cursava o terceiro ano Ginasial já com a certeza de que não seguiria os passos de meus pais e de alguns de meus irmãos. Lá atrás, esse determinismo fora rompido a poder de lutas históricas nascidas no interior do movimento operário brasileiro (tecelões, alfaiates, portuários, mineradores, carpinteiros, ferroviários, gráficos, alimentícios, entre outros, botavam pra quebrar). Lutas que tiveram desdobramentos em meados da década de 1970, contra as dificílimas condições de vida e a constante e espoliante exploração da força de trabalho do operário, que nunca deixou de existir. 

Quando penso em tantos acontecimentos, menos arredo o pé da certeza de que esses surtos de lembranças são importantes e vale a pena o registro. Minimamente porque são eles que nos levam a revisitar a história e nos impedem de burlar o DNA de uma cidade que tem os pés nas fábricas. Foram, e continuaram a ser, as lutas operárias a prova cabal de que Capital e Trabalho são irreconciliáveis. E são essas mesmas lutas que levam à confirmação de que a Primavera brota de onde menos se espera: das verdadeiras causas que nos marcam e nos distinguem.

A fábrica Progresso: registro de infância
Gostaria, ainda, de registrar algumas lembranças da Progresso, construídas ainda na minha primeira infância. Morávamos na Rua 27 de Novembro, na Santa Cruz. Bastava subir as Piteiras (Rua Tanguara) e já estávamos, praticamente, no portão da fábrica, pois era hábito nosso esperar mamãe na saída do turno – muitos faziam isso. Ficávamos ansiosos do lado de fora do portão. As lembranças surgem a partir do momento em que ela pede e consegue do porteiro da fábrica, permissão para nos mostrar o local onde a creche fora construída. Na ocasião, o que vi foi um enorme pátio povoado por gigantescos fardos de algodão e de bobinas. Tudo ao seu redor me impressionou. Grande era a vontade de entrar lá dentro e ver as máquinas funcionando. Mas isso nunca nos foi permitido.

Com o tempo, eu e meus irmãos convencemos o porteiro a nos deixar esperar a saída pelo lado de dentro, sentados no alpendre da varanda que dava acesso ao escritório e demais dependências da fábrica (pode ser que haja imprecisão nessas imagens, mas é assim que elas me ocorrem). Se em princípio comportados, com o tempo (sempre o tempo) a farra já corria solta naquele pátio. Por vezes escapulíamos da vigilância (pouco severa sobre nós) e nos escondíamos no escritório, onde disputávamos, entre e risos e empurrões, a cadeira giratória do chefe do setor. No começo era só ele sair que a gente corria pra lá. Depois, nem isso. Já íamos chegando, mesmo. Mexíamos em tudo: carimbos, papel carbono, elásticos, lápis... Foram muitas as estripulias. Só mesmo o apito da fábrica para por um ponto final no nosso comportamento. Não me recordo de haver outras crianças, além de nós, com tão grande “influência” no pedaço. Mas é quase certo que sim, como certo é o fato de termos sido, de alguma forma, incorporados como sendo “os filhos da Alzira”. Cheguei mesmo a conquistar o direito de fazer soar o apito da fábrica, uma única vez! Talvez por ser a caçula, entre todos. Nesses instantes, muito me impressionava a quantidade de homens e mulheres que entravam e saiam durante a troca de turnos. Alguns operários carregavam no bolso traseiro das calças, uma garrafinha de vidro, arrolhada e cheinha de café. Rostos cansados, cabelos de algodão, mãos e roupas manchadas... apenas um ou outro se dispunha a fazer algum gracejo. Se brilho houvesse seria o meu, extasiada por tudo.

A volta pra casa era quase sempre muito festiva. Tirando o medo de passar diante da fábrica de fazer sabão (para onde podiam ir os maus meninos), havia um cruzeiro, logo adiante, passando a Ponte das Piteiras, bem no alto de um barranco e onde sempre parávamos para rezar às Santas Almas Benditas. O resto da festa ficava por conta do que fôssemos encontrando pelo caminho. Um bicho, uma pedra lançada contra um passarinho (para espantar, somente) ou alguma coisa, menos ou tão esquisita que pudesse atravessar aquela estrada de chão batido.

Como se vê, sou alguém que teve infância.

Marilda é professora da rede estadual de educação, aposentada


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