Esse é um debate fundamental: sobre o avanço legal inquestionável verificado no Brasil a partir da Constituição Cidadã, a Constituição de 88. E há pontos importantes a se destacar, no que diz respeito a essa reflexão sobre os vinte anos desse avanço legal. O grande problema é quando será possível transformar o avanço legal em algo real. Quando é que o Brasil real vai existir, nascer. Quando é que a lei vai sair do papel e se tornar realidade na vida de todas as pessoas, de todos os territórios. Esse é o desafio.
No legal, a gente já avançou muito. Como deputado na Assembleia, posso falar com muita tranquilidade: não precisamos de muitas novas leis, o que precisamos é de criar mecanismos concretos para que as leis saiam do papel e possam valer para todos, e não só para alguns. Esse é o principal debate da Segurança Pública, inclusive. A primeira reflexão sobre a Constituição e a Segurança Pública de hoje se refere ao grau de mobilização que a sociedade tinha na época da Constituinte.
O que aconteceu no Brasil em 84, 85 e 86, foi uma renovação das utopias. Aumentou o nível de participação das pessoas na política, o nível de expectativa das pessoas em relação ao campo político. Houve as Diretas já, o Movimento Sem-Terra recém-criado, todos os espaços de luta, o crescente movimento sindical. Mas se olhamos para hoje, vemos que esse enorme esforço por um avanço legal não se transformou em movimentos de manutenção da mobilização popular.
Hoje nós temos um grande problema. Temos uma sociedade absolutamente despolitizada, uma sociedade desmobilizada, uma sociedade descrente, com inúmeras razões para isso. E o problema são os efeitos sobre isso para a própria sociedade. Não se ganha com isso. Perde-se muito. E aí surge, sem dúvida, uma grande preocupação, afinal, nenhuma mudança mais concreta, mais estrutural, pode acontecer no Brasil com essa sociedade desmobilizada. E na área de Segurança Pública essa mobilização se transformar em um grande tema público é a única saída possível.
Segurança pública não é caso de polícia. Segurança pública é caso de relação Estado-sociedade. Não se trata de um debate sobre polícia. É um equívoco restringir esse debate à discussão sobre qual a polícia que temos. A polícia é um capítulo no debate da segurança pública, nada mais do que isso. Uma sociedade segura não é uma sociedade que tem muitos policiais. A sociedade que precisa, aliás, de muitos policiais é porque não está segura. Uma sociedade segura não é a que tem muita gente presa. Se fosse assim, o Brasil já seria um mar de segurança pública.
Uma sociedade segura é aquela que desenvolve a capacidade da cultura de direitos. E isso não se faz com armas, não se faz com instrumentos de controle, pelo contrário, quanto mais se investe nisso é porque mais se busca segurança e mais se perde liberdade, que é o grande desafio que esse modelo de desenvolvimento nos traz. Qual é nossa escolha entre segurança e liberdade? Até que ponto a gente vai continuar opondo esses dois conceitos como inconciliáveis? Então, são reflexões do que levou a sociedade a estar mais desmobilizada e os efeitos que isso tem sobre a segurança pública de hoje. Os efeitos são visíveis: grades, câmeras, instrumentos de proteção particular em número e diversidade cada vez maior. Tudo isso se transformando na ideia de que a segurança pública se faz de forma privada. Esse, evidentemente, é um grande equívoco de nossa parte.
Outra reflexão necessária se refere ao papel que os setores progressistas desempenham. Hoje, o debate sobre segurança pública é um debate muito forte na esquerda, nos setores mais progressistas, mas isso tem muito pouco tempo que ocorre. Na época da própria Constituinte, na época dos grandes avanços legais que o Brasil teve, tinha muito pouca gente dos setores mais progressistas que priorizava o debate sobre segurança.
Avançamos muito em relação à preocupação em torno da Reforma Agrária, da Educação e da Saúde. Muito corretamente. Mas havia muito pouca preocupação, na década de 80, com a segurança pública, que não era então a principal pauta. Por isso, avançamos pouco, em termos legais. Basta ver a estrutura da própria polícia. Ainda esbarramos em problemas constitucionais, que não conseguimos superar. Não fomos derrotados só pelo forte corporativismo que existe na Segurança Pública. Fomos derrotados pela fragilidade dos setores progressistas, que não olhavam para a segurança como algo que deveria avançar mais do que avançou.
Esse contexto mudou. Mudou também porque a realidade nos impôs essa mudança, porque o que aconteceu na década de 90 se refere a mais um ponto de reflexão que proponho. A década de 90 foi implacável. O que aconteceu no Brasil na década de 90? Foi quando tivemos um determinado modelo vitorioso, de desemprego estrutural. Só para para se ter uma ideia, dados do Dieese, de 1989, ano da primeira eleição direta para a Presidência da República, davam conta de que o tempo médio do desemprego era de 15 semanas. Em 2000, ou seja, passada exatamente a década de 90, o tempo médio de desemprego chega a 40 semanas.
A década de 90 foi uma década crucial para a consolidação de um determinado modelo, um modelo que diz o seguinte: tem uma parte de brasileiros que não serve ao sistema, que não presta para nada, que não é mais exército de reservas. Então tem uma parte de invisíveis, indesejados, desdentados que precisa ser destituída de existência. A década de 90 nos apresentou um Brasil que não é para todos. Tem uma parte desse Brasil que precisa sumir, precisa ser invisível.
E não por acaso ocorre um genocídio nas áreas pobres da cidade. Segundo dados oficiais, houve mais de 16 mil assassinatos nos últimos dois anos, cerca de três mil autos de resistência no período e mais de 12 mil desaparecimentos. Morrem os pobres, principalmente os homens jovens e negros, moradores das favelas.
Isso acontece todos os dias no Rio de Janeiro! Mas de forma invisível. Eu me refiro à relação entre mídia e violência. Olhem o título da matéria do jornal O Globo: “Madrugada em claro ao som de tiros e explosões”. Algum mistério? Isso podia constar na editoria “Mundo” ou “Rio”. Subtítulo: “Vizinhos dos morros não conseguem dormir e, ao amanhecer, ficam com medo de sair à rua”. Qual o problema dessa matéria? Por que só os vizinhos dos morros têm problema? O morro não tem. O morro não tem problema, o morro é o problema.
Daí a brilhante ideia dos muros, sensacional! É cercar os morros e o Rio não tem mais problemas. Quanto maior o muro, melhor. E aí depois basta dizer que é por causa da mata. E fingir que acredita.
Em outra matéria, “A vida num bueiro”, abre-se uma página inteira sobre um grupo de garotos que morava e vivia dentro de um bueiro, no Rio de Janeiro, Ipanema. É no subtítulo que mora o pecado: “Banhistas são surpreendidos por menores que saem drogados do buraco no calçadão”. O problema é que eles saem, esse é o grande problema de Ipanema. Eles saem, não ficam no bueiro, porque se ficassem não dava nem notinha no Ancelmo Góis. Mas eles saem e aí dá matéria de página inteira. São um problema para os banhistas. Nada que um choque de ordem não resolva.
Em um encontro com o prefeito Eduardo Paes disse a ele que espero pela coragem do choque de ordem abandonar os meninos pobres das ruas e chegar às vans que que significam crime organizado no transporte alternativo. Mas um dia o choque de ordem chega lá, basta só um pouquinho mais de coragem do prefeito, mas vai chegar.
Essa realidade da Segurança Pública tem, na década de 90, um marco. Nesse campo, a questão da população carcerária é um tema muito caro a todos nós. A década de 90, de 1995 a 2006, a população carcerária brasileira cresceu 170%. Um exército de invisíveis. E parte da nossa sociedade acha que, quanto mais gente presa houver, melhor.
O Brasil já é a quarta população carcerária do mundo. Só perde para os libertários norte-americanos, para a China e para a Rússia. Há hoje quase 500 mil presos no Brasil. E a população carcerária brasileira cresce, em média, 10% ao ano, enquanto a população brasileira avança 1,4% ao ano. Trata-se de um dado muito interessante e curioso porque a ideia de que o Brasil é o país da impunidade, isso vale para um determinado setor da sociedade. Para esses lugares, sem dúvida alguma é o país da impunidade, mas não é verdade que o Brasil é o país da impunidade para o conjunto do território e das pessoas. O Brasil é o país da punição e da punição letal.
Houve 17 homicídios em Copacabana e Leme, em 2004. Um número elevadíssimo. Em Rocha Miranda e Acari, no mesmo ano, houve 617 homicídios. Sabíamos disso? Não, porque isso não virou informação, porque não é importante, porque a vida das pessoas vale menos e vale se tem endereço. A soberania e a dignidade têm endereço.
Esse é o debate necessário, de que Rio de Janeiro e de que Brasil estamos construindo. Quais são os protagonismos que vamos determinar. A história do Rio de Janeiro é também a história das suas favelas. Por isso é inaceitável o debate sobre os muros. O que a gente precisa é de mais liberdade, mais participação, mais envolvimento dessas pessoas e não da ampliação da sua segregação.
É um crime histórico imaginar que o Rio tem saída sem as suas favelas. É uma tolice, inclusive. O melhor instrumento para a proteção da Mata Atlântica são os moradores da favela, desde que o Estado faça o seu dever de casa, desde que o Poder Público faça o seu dever de casa, mas não faz, mas não quer fazer, não é feito para isso.
O grande debate da Segurança Pública, hoje, é o debate da ordem. “Quem vai manter a ordem, quem vai criar desordem”. E que ordem está sendo mantida? Quais são os instrumentos do Estado para a garantia de um determinado modelo da segurança pública? É o “caveirão” de um lado, o governo Cabral, que na sua campanha disse que não se fazia segurança com “caveirão”, mas acabou de comprar mais dez. São dez “caveirões” novos.
Participei de um debate em Madri e mostrei a imagem do “caveirão” do Bope entrando numa favela. E aí aparecia aquele carro blindado, preto, grande, com o símbolo do Bope — aquela caveira — e eu não falei nada, só mostrei. Ouvia-se, com a tradução: “Sai da frente, vim buscar a sua alma”. E o barulho de tiro para todo lado. Abri o debate com essa imagem. Sem falar nada, todos comentaram: “Mas não é possível a polícia não conseguir achar um carro desse”. Tive de explicar que não era o carro dos criminosos, que o carro era da polícia. Não acreditaram! Um carro preto, uma caveira, atirando para todo lado, ofendendo as pessoas. Não acreditaram que é a polícia que faz isso! Não, não é a polícia, mas o Estado que faz isso. Faz em endereços determinados.
Os autos de resistência exigem também uma enorme reflexão. O que é isso? Qualquer pessoa que a polícia mata, o registro na delegacia não é de homicídio, mas de auto de resistência. Em 2000, tivemos 427 autos de resistência no ano. Em 2005, foram 1.098. Em 2006, 1.063. Em 2007, 1.330 pessoas mortas pela polícia. Registrados oficialmente, diga-se de passagem, em 2008, 1187. Isso significa que, de muito tempo pra cá a polícia mata mais de três pessoas, por dia. Qual é o lugar do mundo onde esse é um dado aceitável? Onde é possível imaginar que a polícia vá matar três pessoas por dia, oficialmente, sem contar o número de desaparecidos, que é enorme. O que o nome diz? Auto de resistência. Qualquer pessoa que a polícia mata, a culpa é de quem morreu, porque reagiu. O policial é a vítima e por isso não ocorre investigação.
Então, nós temos uma estrutura de Estado voltada para o modelo de segurança calcado num discurso que é o mais perigoso que houve no Rio de Janeiro. O discurso da ordem. Como se o Rio de Janeiro não precisasse de mudanças, como se o Rio de Janeiro não precisasse de novos protagonistas, como se o Rio de Janeiro não tivesse que fazer, por exemplo, um debate sobre território, soberania, dignidade e governança. Esse é um debate que cabe ao Poder Público e que só vai ser feito à luz do nosso interesse se existir mobilidade para isso, se existir organização para isso, se existir uma luta que eu chamo hoje de pedagógica.
Nós precisamos transformar esse olhar. Precisamos fazer nascer uma cultura sobre segurança pública que não seja um debate de polícia, mas por uma sociedade segura, uma sociedade que desenvolva a capacidade da nossa segurança atrelada à nossa liberdade. É fundamental que a gente desenvolva hoje uma cultura de direito com novos protagonistas para rediscutir a relação “Estado–território”. Ou então vamos continuar enfrentando a lógica das milícias, a lógica do varejo da droga, onde todos os avanços legais valem para um território, não valem para outro, onde os tribunais são outros, a justiça tem outros códigos, as leis têm outras formas, o tempo é outro, a velocidade é outra. E nós vamos achar que isso é normal, porque isso não nos atinge, porque isso é a realidade dos outros.
Então, é preciso repactuar a nossa expectativa de res publica, a gente tem que repactuar e começar fazendo isso no conceito de cidade, qual é a cidade que a gente quer e para quem vão se destinar os nossos desejos e utopias de cidadania e esse é o debate da segurança que eu proponho.
No legal, a gente já avançou muito. Como deputado na Assembleia, posso falar com muita tranquilidade: não precisamos de muitas novas leis, o que precisamos é de criar mecanismos concretos para que as leis saiam do papel e possam valer para todos, e não só para alguns. Esse é o principal debate da Segurança Pública, inclusive. A primeira reflexão sobre a Constituição e a Segurança Pública de hoje se refere ao grau de mobilização que a sociedade tinha na época da Constituinte.
O que aconteceu no Brasil em 84, 85 e 86, foi uma renovação das utopias. Aumentou o nível de participação das pessoas na política, o nível de expectativa das pessoas em relação ao campo político. Houve as Diretas já, o Movimento Sem-Terra recém-criado, todos os espaços de luta, o crescente movimento sindical. Mas se olhamos para hoje, vemos que esse enorme esforço por um avanço legal não se transformou em movimentos de manutenção da mobilização popular.
Hoje nós temos um grande problema. Temos uma sociedade absolutamente despolitizada, uma sociedade desmobilizada, uma sociedade descrente, com inúmeras razões para isso. E o problema são os efeitos sobre isso para a própria sociedade. Não se ganha com isso. Perde-se muito. E aí surge, sem dúvida, uma grande preocupação, afinal, nenhuma mudança mais concreta, mais estrutural, pode acontecer no Brasil com essa sociedade desmobilizada. E na área de Segurança Pública essa mobilização se transformar em um grande tema público é a única saída possível.
Segurança pública não é caso de polícia. Segurança pública é caso de relação Estado-sociedade. Não se trata de um debate sobre polícia. É um equívoco restringir esse debate à discussão sobre qual a polícia que temos. A polícia é um capítulo no debate da segurança pública, nada mais do que isso. Uma sociedade segura não é uma sociedade que tem muitos policiais. A sociedade que precisa, aliás, de muitos policiais é porque não está segura. Uma sociedade segura não é a que tem muita gente presa. Se fosse assim, o Brasil já seria um mar de segurança pública.
Uma sociedade segura é aquela que desenvolve a capacidade da cultura de direitos. E isso não se faz com armas, não se faz com instrumentos de controle, pelo contrário, quanto mais se investe nisso é porque mais se busca segurança e mais se perde liberdade, que é o grande desafio que esse modelo de desenvolvimento nos traz. Qual é nossa escolha entre segurança e liberdade? Até que ponto a gente vai continuar opondo esses dois conceitos como inconciliáveis? Então, são reflexões do que levou a sociedade a estar mais desmobilizada e os efeitos que isso tem sobre a segurança pública de hoje. Os efeitos são visíveis: grades, câmeras, instrumentos de proteção particular em número e diversidade cada vez maior. Tudo isso se transformando na ideia de que a segurança pública se faz de forma privada. Esse, evidentemente, é um grande equívoco de nossa parte.
Outra reflexão necessária se refere ao papel que os setores progressistas desempenham. Hoje, o debate sobre segurança pública é um debate muito forte na esquerda, nos setores mais progressistas, mas isso tem muito pouco tempo que ocorre. Na época da própria Constituinte, na época dos grandes avanços legais que o Brasil teve, tinha muito pouca gente dos setores mais progressistas que priorizava o debate sobre segurança.
Avançamos muito em relação à preocupação em torno da Reforma Agrária, da Educação e da Saúde. Muito corretamente. Mas havia muito pouca preocupação, na década de 80, com a segurança pública, que não era então a principal pauta. Por isso, avançamos pouco, em termos legais. Basta ver a estrutura da própria polícia. Ainda esbarramos em problemas constitucionais, que não conseguimos superar. Não fomos derrotados só pelo forte corporativismo que existe na Segurança Pública. Fomos derrotados pela fragilidade dos setores progressistas, que não olhavam para a segurança como algo que deveria avançar mais do que avançou.
Esse contexto mudou. Mudou também porque a realidade nos impôs essa mudança, porque o que aconteceu na década de 90 se refere a mais um ponto de reflexão que proponho. A década de 90 foi implacável. O que aconteceu no Brasil na década de 90? Foi quando tivemos um determinado modelo vitorioso, de desemprego estrutural. Só para para se ter uma ideia, dados do Dieese, de 1989, ano da primeira eleição direta para a Presidência da República, davam conta de que o tempo médio do desemprego era de 15 semanas. Em 2000, ou seja, passada exatamente a década de 90, o tempo médio de desemprego chega a 40 semanas.
A década de 90 foi uma década crucial para a consolidação de um determinado modelo, um modelo que diz o seguinte: tem uma parte de brasileiros que não serve ao sistema, que não presta para nada, que não é mais exército de reservas. Então tem uma parte de invisíveis, indesejados, desdentados que precisa ser destituída de existência. A década de 90 nos apresentou um Brasil que não é para todos. Tem uma parte desse Brasil que precisa sumir, precisa ser invisível.
E não por acaso ocorre um genocídio nas áreas pobres da cidade. Segundo dados oficiais, houve mais de 16 mil assassinatos nos últimos dois anos, cerca de três mil autos de resistência no período e mais de 12 mil desaparecimentos. Morrem os pobres, principalmente os homens jovens e negros, moradores das favelas.
Isso acontece todos os dias no Rio de Janeiro! Mas de forma invisível. Eu me refiro à relação entre mídia e violência. Olhem o título da matéria do jornal O Globo: “Madrugada em claro ao som de tiros e explosões”. Algum mistério? Isso podia constar na editoria “Mundo” ou “Rio”. Subtítulo: “Vizinhos dos morros não conseguem dormir e, ao amanhecer, ficam com medo de sair à rua”. Qual o problema dessa matéria? Por que só os vizinhos dos morros têm problema? O morro não tem. O morro não tem problema, o morro é o problema.
Daí a brilhante ideia dos muros, sensacional! É cercar os morros e o Rio não tem mais problemas. Quanto maior o muro, melhor. E aí depois basta dizer que é por causa da mata. E fingir que acredita.
Em outra matéria, “A vida num bueiro”, abre-se uma página inteira sobre um grupo de garotos que morava e vivia dentro de um bueiro, no Rio de Janeiro, Ipanema. É no subtítulo que mora o pecado: “Banhistas são surpreendidos por menores que saem drogados do buraco no calçadão”. O problema é que eles saem, esse é o grande problema de Ipanema. Eles saem, não ficam no bueiro, porque se ficassem não dava nem notinha no Ancelmo Góis. Mas eles saem e aí dá matéria de página inteira. São um problema para os banhistas. Nada que um choque de ordem não resolva.
Em um encontro com o prefeito Eduardo Paes disse a ele que espero pela coragem do choque de ordem abandonar os meninos pobres das ruas e chegar às vans que que significam crime organizado no transporte alternativo. Mas um dia o choque de ordem chega lá, basta só um pouquinho mais de coragem do prefeito, mas vai chegar.
Essa realidade da Segurança Pública tem, na década de 90, um marco. Nesse campo, a questão da população carcerária é um tema muito caro a todos nós. A década de 90, de 1995 a 2006, a população carcerária brasileira cresceu 170%. Um exército de invisíveis. E parte da nossa sociedade acha que, quanto mais gente presa houver, melhor.
O Brasil já é a quarta população carcerária do mundo. Só perde para os libertários norte-americanos, para a China e para a Rússia. Há hoje quase 500 mil presos no Brasil. E a população carcerária brasileira cresce, em média, 10% ao ano, enquanto a população brasileira avança 1,4% ao ano. Trata-se de um dado muito interessante e curioso porque a ideia de que o Brasil é o país da impunidade, isso vale para um determinado setor da sociedade. Para esses lugares, sem dúvida alguma é o país da impunidade, mas não é verdade que o Brasil é o país da impunidade para o conjunto do território e das pessoas. O Brasil é o país da punição e da punição letal.
Houve 17 homicídios em Copacabana e Leme, em 2004. Um número elevadíssimo. Em Rocha Miranda e Acari, no mesmo ano, houve 617 homicídios. Sabíamos disso? Não, porque isso não virou informação, porque não é importante, porque a vida das pessoas vale menos e vale se tem endereço. A soberania e a dignidade têm endereço.
Esse é o debate necessário, de que Rio de Janeiro e de que Brasil estamos construindo. Quais são os protagonismos que vamos determinar. A história do Rio de Janeiro é também a história das suas favelas. Por isso é inaceitável o debate sobre os muros. O que a gente precisa é de mais liberdade, mais participação, mais envolvimento dessas pessoas e não da ampliação da sua segregação.
É um crime histórico imaginar que o Rio tem saída sem as suas favelas. É uma tolice, inclusive. O melhor instrumento para a proteção da Mata Atlântica são os moradores da favela, desde que o Estado faça o seu dever de casa, desde que o Poder Público faça o seu dever de casa, mas não faz, mas não quer fazer, não é feito para isso.
O grande debate da Segurança Pública, hoje, é o debate da ordem. “Quem vai manter a ordem, quem vai criar desordem”. E que ordem está sendo mantida? Quais são os instrumentos do Estado para a garantia de um determinado modelo da segurança pública? É o “caveirão” de um lado, o governo Cabral, que na sua campanha disse que não se fazia segurança com “caveirão”, mas acabou de comprar mais dez. São dez “caveirões” novos.
Participei de um debate em Madri e mostrei a imagem do “caveirão” do Bope entrando numa favela. E aí aparecia aquele carro blindado, preto, grande, com o símbolo do Bope — aquela caveira — e eu não falei nada, só mostrei. Ouvia-se, com a tradução: “Sai da frente, vim buscar a sua alma”. E o barulho de tiro para todo lado. Abri o debate com essa imagem. Sem falar nada, todos comentaram: “Mas não é possível a polícia não conseguir achar um carro desse”. Tive de explicar que não era o carro dos criminosos, que o carro era da polícia. Não acreditaram! Um carro preto, uma caveira, atirando para todo lado, ofendendo as pessoas. Não acreditaram que é a polícia que faz isso! Não, não é a polícia, mas o Estado que faz isso. Faz em endereços determinados.
Os autos de resistência exigem também uma enorme reflexão. O que é isso? Qualquer pessoa que a polícia mata, o registro na delegacia não é de homicídio, mas de auto de resistência. Em 2000, tivemos 427 autos de resistência no ano. Em 2005, foram 1.098. Em 2006, 1.063. Em 2007, 1.330 pessoas mortas pela polícia. Registrados oficialmente, diga-se de passagem, em 2008, 1187. Isso significa que, de muito tempo pra cá a polícia mata mais de três pessoas, por dia. Qual é o lugar do mundo onde esse é um dado aceitável? Onde é possível imaginar que a polícia vá matar três pessoas por dia, oficialmente, sem contar o número de desaparecidos, que é enorme. O que o nome diz? Auto de resistência. Qualquer pessoa que a polícia mata, a culpa é de quem morreu, porque reagiu. O policial é a vítima e por isso não ocorre investigação.
Então, nós temos uma estrutura de Estado voltada para o modelo de segurança calcado num discurso que é o mais perigoso que houve no Rio de Janeiro. O discurso da ordem. Como se o Rio de Janeiro não precisasse de mudanças, como se o Rio de Janeiro não precisasse de novos protagonistas, como se o Rio de Janeiro não tivesse que fazer, por exemplo, um debate sobre território, soberania, dignidade e governança. Esse é um debate que cabe ao Poder Público e que só vai ser feito à luz do nosso interesse se existir mobilidade para isso, se existir organização para isso, se existir uma luta que eu chamo hoje de pedagógica.
Nós precisamos transformar esse olhar. Precisamos fazer nascer uma cultura sobre segurança pública que não seja um debate de polícia, mas por uma sociedade segura, uma sociedade que desenvolva a capacidade da nossa segurança atrelada à nossa liberdade. É fundamental que a gente desenvolva hoje uma cultura de direito com novos protagonistas para rediscutir a relação “Estado–território”. Ou então vamos continuar enfrentando a lógica das milícias, a lógica do varejo da droga, onde todos os avanços legais valem para um território, não valem para outro, onde os tribunais são outros, a justiça tem outros códigos, as leis têm outras formas, o tempo é outro, a velocidade é outra. E nós vamos achar que isso é normal, porque isso não nos atinge, porque isso é a realidade dos outros.
Então, é preciso repactuar a nossa expectativa de res publica, a gente tem que repactuar e começar fazendo isso no conceito de cidade, qual é a cidade que a gente quer e para quem vão se destinar os nossos desejos e utopias de cidadania e esse é o debate da segurança que eu proponho.
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