sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Eu quero ver "A Favorita" e dane-se a Palestina

* Por Ana Maria Reis



Para quem acha um despropósito discutir a invasão genocida à Gaza enquanto o mundinho à sua volta desaba ou se materializa no saldo negativo do cheque especial - ou no péssimo rendimento do seu time de futebol no último Brasileirão - meter-se em casa hoje, pra assistir ao gran finale de mais uma novela das oito talvez seja programação certa e naturalizada, porque assim os meios de comunicação o querem e o fazem, com grande competência e aval dos investidores.

Durante os últimos meses, “A favorita” da Rede Globo e seu cartel de celebridades estampou a primeira página de vários jornais impressos; coalhou internet de informação; promoveu enquetes e polêmicas nos programas de auditório e fofoca; esquentou o mercado das revistas especializadas em antecipar “fatos” e “acontecimentos” da novela; virou piada nos humorísticos; sermão entre pais e filhos; debate em sala de aula, botequim, salão de beleza. Enfim, loteou, ocupou e alienou a consciência do cidadão médio, como regra de imposição do processo de alienação capitalista, que incide em todas as formas de exploração e que resulta na apatia às causas fundamentais da sociedade.

No entanto, ao espectador menos complacente e com um mínimo de bom senso, durante esse mesmo tempo se tornou impossível ler em banca de jornal a “notícia” de que a mulher de Ciro Gomes é a assassina de um magnata da celulose e não apreender criticamente que a Globo confunde ficção e realidade com o fim de lucrar e manipular a opinião pública.

O produto novela das oito, top de linha da exportação cultural made in Brazil, repete e impõe hoje mais que nunca o discurso do Jornal Nacional. Os patrocinadores são os mesmos e de há muito não apenas a chamada imprensa propicia a conformação dos humores sobre o destino político a ser tomado.

O requinte que acomete o setor é espantoso. A teledramaturgia hoje soma ao altíssimo nível técnico um enorme aparato ideológico de controle da informação – da pesquisa de mercado à pecha do merchandising social como forma de angariar e reter mais e mais recursos dos grandes investidores. Ironicamente, a novela também estrelada pela Lisa Minele tupiniquim bem que podia se chamar “A favorecida”, ao contar com uma tríade de peso: Aracruz Celulose, Votorantim e Suzano.

Subliminarmente, “A favorita”, a exemplo de todas as outras que a antecederam no horário nobre, constrói uma imagem sofismal de que a parceria emissora e empresariado não é tão maléfica assim, gerando emprego e cumprindo com as chamadas “responsabilidades sociais”. Na realidade, através do fictício engendra o factóide do desenvolvimento sustentável.

Do milionário acordo publicitário entre a Globo e a indústria do papel, não se podia esperar outra coisa que não fosse a super-produção que está no ar. “A favorita” é um deboche, a mais absurda provocação – ao menos àqueles que não encontram dificuldade em enxergar que as motivações dos massacres que assolam o Oriente Médio estão a bater em nossa porta há tempos.

Pois “A favorita” veio selar com cinismo a omissão do telejornal brasileiro e imprensa em geral, que permitem a cobertura jornalística deficiente sobre diversos temas relacionados à trajetória da Aracruz no Brasil e suas joint ventures, entre os quais listo:

* o desmatamento generalizado;

* a invasão de terras indígenas e quilombolas para o plantio de eucaliptos e pinus;

* o reflorestamento baseado na monocultura e a conseqüente desertificação dos ecossistemas atingidos;

* o empobrecimento do solo para o plantio e intoxicação de mananciais gerando fome e desestruturando a economia das comunidades ribeirinhas e do campesinato em geral;

* a corrupção de técnicos dos órgãos governamentais responsáveis pelo controle ambiental;

* a criminalização dos movimentos sociais envolvidos no processo de luta pelas terras ilegalmente invadidas e pela sobrevivência da população diretamente atingida.

[É sempre bom registrar que, para se produzir uma tonelada de papel são necessárias duas a três toneladas de madeira, uma grande quantidade de água - mais do que qualquer outra atividade industrial - e muita energia - a atividade está em quinto lugar na lista das que mais consomem energia..]

Reiterando o discurso JN, no folhetim disputas judiciais e o calor dos movimentos sociais não têm vez. Se no jornal a sociedade civil organizada é taxada de bandoleira, em “A favorita”, ela simplesmente não existe. As questões ambientais e de impacto social não fazem parte do enredo e quando a temática é tangenciada, ela se dá de maneira a favorecer seus patrocinadores, vendendo o peixe do reflorestamento sem tocar no grave problema dos desertos verdes e do quanto se lucra com a isenção fiscal através dos créditos de carbono.

Obviamente o que se pretende pela via do entretenimento é gerar mais desinformação sobre os reais interesses de quem banca a Rede Globo e esconder da população o legítimo enfrentamento entre militantes de diversos movimentos sociais de área e as empresas de celulose no Brasil.

E o “fim” da novela, muitos conhecem – menos o que hoje à noite abandona o bom papo com os amigos num boteco ou o livro na cabeceira, e, num entusiasmo patético assiste ao embate final entre Flora e Donatela. O “fim”, o objetivo central desse rico empreendimento é alienar covarde, continuada e gradativamente. Enquanto isso, em Gaza...

Um comentário:

Anônimo disse...

a quem se interessar possa:

• Leia o relato da quilombola Selma Dealdina do estado capixaba. O Espírito Santo teve mais de 130 córregos secos após a instalação da Aracruz em seu território: Novela da Globo ‘A Favorita’ tem o patrocínio da Aracruz Celulose, Suzano e Votorantim, http://www.koinonia.org.br/OQ/analise_conjuntura_detalhes.asp?cod_analise=23
• A propaganda ideológica de todos os dias - Telenovelas da Rede Globo incorporam em suas tramas discursos contra temas pautados pelo esforço progressista de segmentos populares da sociedade, por Rafael Villas Boas, militante do MST: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/a-propaganda-ideologica-de-todos-os-dias
• O “merchandising social” da TV Globo e os desertos verdes - A Globo usa a novela A Favorita para fazer campanha em defesa das empresas Aracruz Celulose e Stora Enso, líderes no mercado da indústria de celulose, por Gustavo Barreto: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/o-201cmerchandising-social201d-da-tv-globo-e-os-desertos-verdes/?searchterm=•O%20“merchandising%20social”%20da%20TV%20Globo%20e%20os%20desertos%20verdes%20-