Autor: Caetano Veloso
Reproduzido do jornal: "O Globo"
Insistindo em Martinha,
Lucrécia e "Verdade tropical", acho que eu deveria parar para escrever
algo meditado sobre o caso
Não me senti bem ao ver a
foto de um policial armado no corredor de uma escola do Rio, na frente
de um grupo de adolescentes. Parece-me que trazer o conflito entre a
violência (legítima) do Estado e a violência marginal para dentro do
ambiente da educação não pode prometer boa coisa. É um evidente exemplo
de falta de sensibilidade para o sentido da educação.
Os policiais vão
proteger quem exatamente, aliás? E como se indicarão os suspeitos? Os
esboços de respostas a perguntas como essas que li no jornal me
pareceram desalentadores. Pesadelo.
A impressão mais forte que fica, no
entanto, é a de descuido com as imagens sociais a que crianças devem
ficar expostas dentro dos edifícios aonde são levadas para aprender a
ler, escrever, calcular, tomar consciência da formação da sociedade em
que vivem, do mundo em que nasceram, das leis que regem a matéria, e,
sobretudo, a conviver.
Li os artigos de Zé
Miguel Wisnik e Francisco Bosco sobre o ensaio de Roberto Schwarz a
respeito de "Verdade tropical". Li também o de Nelson Ascher na "Veja".
Naturalmente tenho interesse na discussão. E, também naturalmente, me
sinto mais próximo de Wisnik e Bosco do que de Ascher, embora tenha
grande respeito pela produção poética e crítica deste último. É que sou
mesmo mais chegado aos meus dois colegas de espaço aqui no GLOBO do que
ao bissexto articulista da revista da Abril.
Contrariando o que Schwarz
levou um jovem esquerdista a dizer de mim (que eu me situo, no espectro
político, na centro-direita), a primeira reação que tive ao ler o texto
de Ascher foi - confirmando o que Schwarz sugere sobre minha
personalidade, isto é, que sou afeito a suspeitos arranjos
harmonizadores entre forças antagônicas - pensar: se eu fosse escrever
um artigo para a "Veja", procuraria me colocar um pouco mais à esquerda.
Mas o fato é que a conclusão final do poeta - de que o ensaio de
Schwarz, apesar dos elogios (que eu, de minha parte, e em discordância
do que ele diz, não considero superficiais), resulta numa reprovação
política que se transformaria em condenação policial caso não vivêssemos
numa democracia liberal e sim num país comunista de partido único.
Me
reconheço nos textos de Bosco e Wisnik. E na foto escolhida pela "Veja"
(nunca apareço tão bonito naquela publicação).
Insistindo em Martinha,
Lucrécia e "Verdade tropical", acho que eu deveria parar para escrever
algo meditado sobre o caso. No momento estou escrevendo apenas canções
(é como se isto aqui não fosse escrever). Mas se eu achar o tempo e
conseguir reter na mente o que me parece que poderia ser útil e
relevante para a discussão, farei. Não sei se neste espaço, que é grande
demais para o que em geral tenho para dizer, mas demasiado pequeno para
o que passa pela minha cabeça quando penso nas questões levantadas por
Schwarz.
Revi "Eu receberia as
piores notícias dos seus lindos lábios" em Salvador - e gostei ainda
mais. Parte do entusiasmo pode se dever a eu ter ido assistir ao filme
no Cine Glauber Rocha, uma das coisas que mais amo nesse Brasil. A
entrada, que já era assim - com os elegantes índios de Caribé nas
paredes - quando eu me mudei para Salvador, em 1960, a praça Castro
Alves na frente, a baía atrás da estátua do poeta. Mas acredito que a
maior parte da responsabilidade pelo meu entusiasmo é do próprio filme,
digam o que disserem. José Eduardo Agualusa, o escritor angolano que
tanto admiro (e cujos romances "Nação crioula", "O ano em que Zumbi
tomou o Rio" e "O vendedor de passados" - pelo menos esses - deveriam
ser lidos por todos os brasileiros alfabetizados), me disse, na noite da
pré-estreia do filme no Rio, que o romance de Marçal Aquino em que ele
se baseia (tendo o próprio Aquino participado da adaptação do livro para
o cinema) é muito bom. Fui à Livraria da Travessa e comprei um exemplar
para levar para a Bahia. Claro que Agualusa não poderia estar errado.
O livro é mesmo bom (a moça da livraria me disse que uma pá de gente
sabe muito bem disso, já que o romance vende muito e os vendedores ouvem
elogios de seus fregueses). E tem todas as vantagens que a literatura
pode ter sobre o cinema. Mesmo assim, vejo algo nesse filme (e não é só a
Camila Pitanga) que vai além das qualidades do livro, que o filme
apenas em parte reafirma. Suponho que ter de viajar ao Pará para
realizá-lo, e lá encontrar aquela gente (mulheres, homens adultos,
crianças de 8 anos, velhinhos de ambos os sexos) que canta tão
divinamente bem os refrãos religiosos que o pastor (no filme tão
poeticamente sincrético, com estrutura básica de pastor evangélico mas
com elementos de padres católicos da teologia da libertação e gurus do
Santo Daime) puxa a palo seco. E - talvez mais intensamente ainda - o
grupo de cantora, músicos e plateia de um show de carimbó ao ar livre
(como parte de uma manifestação política): é o Brasil dos sonhos
explodindo (bastam alguns segundos) em generosidade inédita no concerto
das nações. Kitsch? Who cares...
Não sei como a Bahia
consegue ainda parecer bonita. Mas acontece. Apesar dos prédios que
parecem feitos de plástico - e que têm triângulos vasados sobre os
pórticos -, o mar encontra espaços elegantes para insinuar seus azuis e
verdes, num final de abril que desmente o ditado ("abril, chuvas mil")
mas se torna começo de maio com direito ao tradicional "veranico",
expressão que menciono com um aceno a Fernando Barros, que, entre alguns
outros, me compreenderá.
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