Ladislau Dowbor**
A realidade brasileira nos oferece excelente base para analisarmos a evolução do papel do espaço urbano. Em 1950, o país era esmagadoramente rural. Em pouco mais de uma geração, de forma intensa e caótica, tornámo-nos um país de quase 80% de população urbana. Provocada mais pela expulsão do campo do que pela atração das cidades, este êxodo urbano obedeceu à tripla dinâmica da tecnificação, da expansão da monocultura e do uso da terra como reserva de valor. Nunca é demais lembrar que temos 371 milhões de hectares classificados pelo IBGE como terra ótima, boa e regular, enquanto utilizamos cerca de 60 milhões de hectares na lavoura, pouco mais de 15%. Este dramático desperdício do solo agrícola, quando temos dezenas de milhões de esfomeados, tem nome e endereço. Os 61 mega-estabelecimentos agrícolas, de mais de 100.000 hectares, cultivam 0,14% da área disponível, enquanto as pequenas propriedades cultivam 65%. Os grandes estabelecimentos estabelecimentos espalham cabeças de gado nestas áreas, no que tem sido pudicamente chamado de pecuária extensiva, e explicam que não se trata de terra improdutiva, mas de pasto. Imagine-se o que seria da Europa com este tipo de intensidade de uso do solo.
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O mesmo processo que gera esta situação explosiva abre oportunidades. A população urbanizada é organizável, e os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade para a sociedade retomar as redeas do seu próprio desenvolvimento. O mundo urbano moderno está literalmente fervilhando com as novas iniciativas de organização social e com as novas tecnologias urbanas. Desde as iniciativas pioneiras de Lajes, passando a experiências consolidadas como as formas descentralizadas de gestão de saúde, a elaboração participativa dos orçamentos municipais, particularmente amadurecidas em Porto Alegre, os terminais de Londrina que permitem a qualquer cidadão controlar as despesas da cidade, a recuperação do centro de Recife em parceria com os diversos atores sociais da cidade, as experiências de educação na cidade de são Paulo, o sistema de garantia de renda mínima em Campinas, os sistemas descentralizados de gestão em Santos, assistimos a um processo onde as cidades aboliram a visão de administrações limitadas à cosmética urbana, e buscam parcerias e novas reengenharias sociais para recuperar o seu espaço econômico, a cidadania local.
Não que as iniciativas locais sejam suficientes. No entanto, sem sólidas estruturas locais participativas e democratizadas, não há financiamentos externos ou de instituições centrais que produzam resultados. De certa forma, a cidade está recuperando gradualmente um espaço de decisão direta sobre a "polis", recuperando a dimensão mais expressiva da política e da democracia. é significativo neste sentido que tenhamos pela primeira vez uma Cúpula das Cidades, conferência mundial de Istambul destinada a avaliar as novas dimensões das políticas urbanas.
As cidades, por sua vez, têm de ser recolocadas no espaço rural a que pertencem. Desta maneira, seria mais correto falar em espaço local do que espaço urbano. Empolgado com a sua recente urbanização, o ser humano esquece a que ponto está vinculado ao campo que cerca as cidades, e um elemento essencial do desenvolvimento urbano será a reconstrução da relação cidade campo, já não a partir do campo, na visão clássica da reforma agrária, mas a partir da própria cidade.
A tendência para um reforço generalizado da gestão política nas próprias cidades representa uma importante evolução da democracia representativa, onde se é cidadão uma vez a cada quatro anos, para uma democracia participativa, onde grande parte das opções concretas relacionadas com as condições de vida e a organização do nosso cotidiano passam a ser geridas pelos próprios cidadãos.
Numa série de países com formas mais avançadas de organização politica, como os paises escandinavos, dois terços ou mais dos recursos públicos são geridos pela própria sociedade, de forma participativa, ao nível dos municípios. Isto implica, uma vaz mais, mudanças institucionais: além do prefeito e de uma câmara de vereadores, as cidades passam a se dotar de formas diretas de articulação dos atores sociais do município, com a criação de um forum de desenvolvimento, participação de empresários, de sindicatos, de colégios ou universidades e assim por diante.
Ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a empresa, o público e o privado, surge assim com força o espaço público comunitário, e as nossas opções se enriquecem. Na excelente formulação do relatório das Nações Unidas, "Na prática, tanto o Estado como o mercado são frequentemente dominados pelas mesmas estruturas de poder. Isso sugere uma terceira opção mais pragmática: que o povo deveria controlar tanto o Estado como o mercado, que precisam trabalhar articulados, com as populações recuperando suficiente poder para exercer uma influência mais efetiva sobre ambos."
Em outros termos, a cidade aparece hoje como foco de uma profunda reformulação política no sentido mais amplo. Não que o nível local de organização política substitua transformações nas formas de gestão política que têm de ser levadas a efeito nos níveis do Estado-nação e mundial: mas comunidades fortemente estruturadas podem constituir um lastro de sociedade organizada capaz de viabilizar as transformações necessárias nos níveis mais amplos. Não há democracia que funcione com a sociedade atomizada.
*Trecho do livro "A reprodução do Social", de Ladislau Dowbor – para a íntegra do capítulo “Da globalização ao poder local: a nova hierarquia dos espaços”, acesse:
http://dowbor.org/5espaco.asp
Para ver o livro completo, em PDF, acesse:
http://dowbor.org/artigos/01repsoc1.pdf
** Ladislau Dowbor é formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agencias das Nações Unidas, governos e municípios, bem como do Senac. Atua como Conselheiro na Fundação Abrinq, Instituto Polis, Transparência Brasil e outras instituições.
Para saber mais, acesse o site http://dowbor.org/
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