quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Melhores momentos da entrevista de Chico Alencar (PSOL) à revista Caros Amigos.

Navio carregado de ideais
 
Por coincidência, neste mês em que o PT comemora 31 anos de existência, a revista Caros Amigos número 166, nas bancas, traz longa entrevista comigo, que durante 19 anos fiz parte daquela agremiação política, inclusive como membro de sua direção nacional. Transcrevo, nos anais desta Casa, os trechos que considero mais relevantes da entrevista, destacando o que representou o PT para tantos de nós hoje no PSOL, e as razões de nossa saída. Versos da música ‘Meia Noite’, composição de Edu Lobo e Chico Buarque, sintetizam esse momento político tão difícil quanto necessário para nós: “...Meu navio carregado de ideais/que foram escorrendo feito grãos/as estrelas que não voltam nunca mais/e o oceano pra lavar as mãos”...

1 – Primeiros passos e...cadeia!

Minha estreia no movimento estudantil, aos 16 anos, em uma passeata contra a ditadura, acabou em prisão. Dormi no quartel da Polícia Militar, em uma estrebaria, com mais cem colegas...  e os cavalos.

2 – Formação cristã, fé rebelde

Nessa época, fim dos anos 60, havia uma ascensão do questionamento da burocracia socialista soviética. E movimentos que, não negando o socialismo, buscavam uma renovação.            Eu sou cristão, de formação católica, socialista, marxista, apostólico - porque sou um pregador -, carioca... não sou romano! Católico, apostólico. Romano, não. E foi a partir da JEC (Juventude Estudantil Católica), depois as Comunidades Eclesiais de Base.  No Rio (de Janeiro), onde o Cardeal era muito conservador, ao contrário daqui, com Dom Paulo Evaristo Arns, elas não se desenvolveram muito. Cresceram mais no entorno, na Baixada, com o dom Adriano Hipólito, de Nova Iguaçu, que até foi sequestrado pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas), depois com Dom Mauro Morelli, de Caxias e São João de Meriti.

3 – Para lecionar, atestado ideológico

Na 2ª metade dos anos 70 passei no concurso para professor de História, mas não pude tomar posse, porque eu precisava do “atestado ideológico”. Fiquei no DOPS esperando uma hora e meia o Mário Borges, inspetor. Era aquele protótipo mesmo de tira, gordão, forte, mal humorado. Um jovem professor, concursado, aprovado, fica na antessala daquele prédio sombrio para ser sabatinado por um policial, truculento, torturador, muito mal afamado nos meios juvenis. Eles tinham a minha ficha completa desde a prisão em 1966, até a passagem pelo grêmio do Colégio de Aplicação.

4 – PT, uma experiência singular

Durante um tempo importante da história inicial do PT, não sem contradições, isso foi praticado: mandatos populares, gabinetes de rua, prestação de contas públicas, audiências abertas, idas aos bairros, presenças nos movimentos, apoiando as lutas. O parlamento podia ser um instrumento para ajudar esses movimentos, para não ser um parlamento estritamente burguês ou da reprodução do sistema dominante. Hoje uma aliança do PT com o PTB, com o PL, com o PR ou o PP é corriqueira, está dada.

Naquela época (1996) tinha comício com militância. Por 1,5% a gente não foi para o segundo turno na disputa da Prefeitura do Rio. Foi muito bonita a campanha, só que perdemos.

5 – A ruptura dolorosa

Nossa saída do PT foi o momento mais doloroso depois do enfrentamento da ditadura: foi um golpe, uma frustração.

Já na crise, propus, ao tesoureiro, que era o Delúbio, em 2004, que a gente desse um exemplo: transparência total, cada centavo que entra para a campanha a gente vai publicizar on line. E ele: “transparência demais é burrice!”

A gente fez plenárias com 300, 400 pessoas para discutir: sai ou não sai, fica ou não fica. E houve uma maioria, digamos que de 65 para 35, 60 para 40, pela saída do PT. Foi difícil, foi dolorosa. E vieram convites para entrar: PSB, PPS. PV, PDT, PCdoB. Esses partidos considerados mais progressistas queriam nossos quadros políticos mais conhecidos, mas nós falamos: “Não, então é melhor ficar no PT a trocar seis por meia dúzia.” E aí ingressamos no PSOL que já tinha os seus fundacionais ali, mas ainda sem ter disputado nenhuma eleição.

Nós saímos do PT para continuar praticando os valores políticos que aprendemos no próprio PT, e que no PT de hoje não são viáveis de se praticar. Você tem que fazer um nível de concessão que te ofende, te agride, te choca. Não dá, ficou insustentável.

6 – Cooptação dos movimentos

Desde aquela época achava que a autonomia dos movimentos populares e sociais era muito importante, e continuo achando.

Tudo o que fica “chapa branca”perde a pujança, perde a função. É o problema do socialismo quando estatiza a própria dialética da sociedade e aí isso tudo perde o viço.

O espaço da cooptação, da política do atrelamento, abre um patamar de disputa maior do que o da repressão. Na repressão, você fica encolhido, sufocado, não tem espaço de movimentação. A cooptação coloca na cena pública concepção de movimento, sua relação questiona os próprios movimentos, a gente tem como estar lá, fazendo esse embate.

7 – Lula

Ninguém tinha a ilusão de que o Lula ia decretar o socialismo, a gente não era mais ingênuo, mas achava que ia ser um governo de mudanças.

Essa comunicação com a população faz com que o cidadão comum, inclusive despolitizado, se identifique: “O Lula sou eu. Eu sou um Silva, também. A diferença é que ele é um ex-pobre, mas que continua sabendo o que é a vida da pobreza. Eu continuo pobre, aqui, mas deu uma melhoradinha, comprei até uma geladeira nova”.

O Lula, de qualquer maneira, pela sua biografia, pela sua história, tinha que dar satisfações a um nível de demanda popular maior, tanto que não houve uma repressão aberta aos movimentos populares.

8 – Eleições 2011 e o PSOL

Eu entendo essa última eleição minha, com esses 240.724 votos, como uma espécie de culminância de uma trajetória de vida política.

O PSOL, que tem só cinco anos de vida, é um partido que ainda não se consolidou, um partido pequeno com vocação de grandeza.

Há também quem diga que partido político no Brasil que não tiver uma figura fortemente carismática não se afirma nacionalmente. É uma meia verdade, a realidade mostra um pouco isso. O Lula é muito maior que o PT e a Heloísa Helena é uma figura que tem também esse carisma, essa capacidade de se inserir no imaginário popular.

Em 2006, o PSOL sobreviveu. O PSOL no imaginário da parcela da população que identifica a legenda, tem uma boa figura, que agora com essa eleição de 2010 se confirmou.

Heloísa fez em torno de 6 milhões de votos. O Plínio fez 900 mil. Entretanto, a votação na legenda e nas eleições proporcionais para o PSOL se manteve a mesma. Lá no Rio de Janeiro Plínio arrastou multidões de jovens, quando teve um circuito universitário, fez uma bela figura, questionando, contestando. O Plínio era um provocador, no sentido de resgatar a dimensão do debate político. Ele colocava questões que incomodavam a Dilma e a própria Marina.

9 – Esquerdas

As esquerdas têm que construir em 2011 uma plataforma comum, que envolva política econômica, assumir a dívida pública como uma questão central para a formulação de uma política econômica, que reduza a força do capital financeiro, da ciranda. E que tenha no âmago dela, evidentemente, a questão do controle ambiental, a questão ecológica e da chamada sustentabilidade.

10 – Despolitização da Política

O aumento dos Parlamentares foi abusivo, sem a menor sensibilidade em relação à sociedade. Mas o que isso expressa? A autonomização da vida política em relação à sociedade. No Brasil, mais que em outros lugares, a atividade política passa a ser quase que uma loja de departamentos, que são os partidos com interesses próprios e muito vinculados a sugar a máquina, a promover fidelidades de acordo com o que você pode mamar nas tetas do Estado. Mandato virou uma profissão, e não mais um serviço.

O PSOL é um dos poucos partidos que ainda mantém a mística da política como instrumento de mudança. A grande maioria está inteiramente inserida nisso que eu estou chamando de profissionalização da política.

Estamos em uma ‘democracia direta do capital’, como diz o Professor Carlos Walter. Por isso o papel decisivo da instância política, daquela idéia de divisão de poderes que é da antiguidade clássica greco-romana, em algum aspecto, e depois recebeu a formulação do Rousseau, do Montesquieu, do Locke. Nem isso mais a gente está tendo, a representação, a chamada soberania popular. Mas a idéia de felicidade está na luta.

11 – “Eficiência” como valor absoluto

O discurso hegemônico é o da “eficácia”, da “competência”, o desenvolvimento a qualquer preço: o Brasil avançando nos marcos do capitalismo. “Nós já não somos dependentes dos Estados Unidos, nós já estamos nos afirmando como pujança mundial”. É um discurso muito enganoso que não resiste ao olhar para a nossa realidade e ver como anda a educação pública, como anda a gestão das cidades, como anda a economia que realmente permitiu esse crescimento, mas que tem enormes fragilidades.

12 – Educação

O nosso papel, do PSOL é jogar para a sociedade a discussão: qual é a concepção central do Plano Nacional de Educação? Que apostas ele fazem, para nós estratégica, por uma educação radicalmente pública e democrática? O que é a parceria público-privada na educação, que o PROUNI estabelece?

O programa do PMDB, que também é governo, tem forças poderosas, dentro dessa visão de um modelo de desenvolvimento onde o privado é o êmulo, é o único possível, com a crítica que procede pela má gestão da máquina mastodôntica do Estado, a burocracia, a lentidão, a corrupção, propõe um PROUNI para o ensino básico! Na concepção atual, parece que é uma grande parceria público-privada em todas as áreas, inclusive na área política. E a instância pública vai se encolhendo.

13 – Ausência do Estado

A ausência do Estado em áreas pobres foi dirigida e intencional. O poder público se encolhe, mas a política de clientela, o centro social, está lá sempre, essa área não é esquecida porque tem lá o eleitorado. Aí, é claro, surge o tráfico armado de drogas, e o negócio da arma é mais letal e perigoso para esse tipo de domínio, que tem como alternativa as milícias, igualmente criminosas.

O domínio armado do tráfico cria uma situação de despotismo nas comunidades pobres, quem não têm conivência com isso, têm convivência.

14 – A “Guerra” no Rio

É uma falácia também dizer que é uma guerra, “o Rio está em guerra”. Guerra supõe projetos de poder e concepção de Estado, de nação, em confronto. Não tem nada disso, é um negócio, que tem o seu baronato, que de fato não está no morro. Ali é o varejo armado da droga. São meninos, como disse muito bem Marcelo Freixo, “pé de chinelo, a arma de alta letalidade no braço e... cabeça vazia”.

As autoridades políticas que apoiaram a formação das milícias como autodefesa comunitária, são as mesmas que agora falam de um novo paradigma de combate a essa criminalidade.

Para a autoridade da Segurança Pública no Rio de Janeiro há distinções: “Tem a facção do crime que vai para o confronto, é essa que nós estamos combatendo agora. Tem a que está mais de olho no negócio, corrompe. Os milicianos não são bonzinhos, são igualmente cruéis, uma coisa violentíssima. Mas eles não mandam bala contra nós, a polícia pode entrar em áreas controladas por milícias, que eles se encolhem, ficam discretos, alguns procuram nem ser reconhecidos, porque podem ser colegas de batalhão. Tem que ter prioridade, não damos conta de tudo”.

No Morro da Providência houve aquela tragédia dos soldados do Exército entregarem os meninos para um grupo rival de traficantes. Isso é terrível e mostra que Exército não é para fazer policiamento. Os generais do Comando Militar do Leste me disseram: “Não, mas é para gente fazer um apoio logístico”

A população ali está gostando dessa presença através das UPPs, porque são soldados com formação nova, não é o PM de formação truculenta e corrupta. Mas sem ação social forte, continuada,não vamos avançar.

15 – Direito à memória

A concepção vigente na cúpula das Forças Armadas é de que o passado não pode ser revisitado; que esse livro da História tem que ter as suas páginas puladas e, se possível, arrancadas. Qualquer movimento de abertura de arquivos e identificação de torturadores eles carimbam como revanchismo, como se nós outros quiséssemos torturar os torturadores.

Nesse aspecto, o Brasil, além de ser condenado internacionalmente, continua mais atrasado que os nossos vizinhos. Era para ser Comissão da Verdade e da Justiça, virou só Comissão da Verdade.

A gente tem que avançar por uma questão civilizatória, e saber quem, em nome da autoridade pública, com recurso público, sendo servidor público, cometeu crimes. A gente tem direito de saber quem, usando inclusive estabelecimentos públicos, montou centros de tortura. Como, por que, quem financiou? É um aforisma antigo: “Quem não se recorda do passado, corre o risco de revivê-lo”

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