sábado, 23 de fevereiro de 2013

VQ // 49 // Cultura

112 anos de Clementina, a Rainha Quelé

Da periferia Clementina foi para o centro do cenário cultural de sua época e tornou-se ícone da cultura negra. Era a representação da resistência cultural, era o que a cultura brasileira tinha de mais puro, o mais próximo de sua raiz e tradição. Era o velho e era o novo.

POR Letícia Serafim

Clementina de Jesus nasceu em Valença, no bairro do Carambita, ao sétimo dia de fevereiro de 1901. Era católica, devota de Nossa Sra. da Glória, de São Jorge e Nossa Sra. da Penha, mas tinha o corpo fechado na macumba. Seu pai, violeiro, ajudou a construir e sua mãe foi zeladora da Capela de Santo Antônio do Carambita. Com Dona Amélia Rezadeira, sua mãe, aprendeu os cantos e os ritmos dos seus antepassados negros vindos da África, que encontraram, no contexto da escravidão da região do Vale do Paraíba, a maneira de ressignificar sua tradição e cultura.

A trajetória de vida de Clementina é a mesma de muitas famílias negras no período de pós-abolição. Nesta época houve grande êxodo das comunidades negras do Vale do Paraíba para regiões Norte, Oeste e Centro da cidade do Rio de Janeiro. Em 1910, por volta dos oito anos de idade, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro buscando melhores oportunidades de vida.

A herança dos cantos negros das fazendas de Valença viajaram com ela até a capital. Na Praça Seca, subúrbio rural do Rio de Janeiro, Clementina, se destacando por sua voz e desenvoltura, passa a fazer parte de um grupo de pastorinhas e de folia de reis liderado por um vizinho, João Cartolinha. Essa tradição cultural foi fortemente influenciada pelos negros libertos. Foi a partir das folias e das pastorinhas que surgiram os cordões e ranchos, primórdios das escolas de samba, cujos membros se fantasiavam, usavam máscaras e desfilavam nos dias de carnaval.

O cultivo dessas manifestações culturais afro-brasileiras era uma forma de manutenção da identidade e da união do povo negro na construção de uma nova forma organizacional de vida. Clementina tinha grande circulação nessa comunidade negra que estava em plena efervescência cultural e artística, influenciando e sendo influenciada. Nas famosas festas do terreiro de Tia Ciata, no Zicartola ou em reuniões em casa de amigos, Clementina conviveu com figuras como Donga, João da Baiana, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres.

Sendo mulher num período em que o universo feminino era bastante limitado e restrito quase exclusivamente ao lar, Clementina era livre e independente. Gostava mesmo era de vadiar – como dizia a música de Candeia “–Não vadeia Clementina. –Fui feita para vadiar!” –, gostava da rua, das festas, das rodas de samba e de uma boa cervejinha. Casada grande parte da vida com o Pé Grande da Mangueira, pai de uma de suas filhas, Clementina circulava com desenvoltura em espaços marcadamente masculinos. Partideira de mão cheia, era uma das poucas mulheres que se arriscavam a improvisar nas rodas de samba. Nos anos 50, foi diretora da Unidos do Riachuelo e da Índios do Acaú, cargo que até os dias de hoje foi ocupado por poucas mulheres.

Todo o seu processo de socialização, desde os cantos africanos da infância em Valença, passando pela influência do catolicismo e dos amigos da macumba, a participação no grupo das pastorinhas e no samba naturalmente foram compondo a identidade musical de Quelé, como era chamada. No seu repertório, dominavam os gêneros musicais relacionados à tradição negra como os caxambus, corimas, batucadas, jongos, cantigas de reisado, cantos de senzala, ladainhas, cantos de trabalho e sambas. Sua música e seu cantar são marcas de sua sociabilidade, de sua memória e da identidade de seu grupo.

Assim como a maioria das mulheres negras e pobres do período, Clementina trabalhou como empregada doméstica durante a maior parte da vida. Descoberta pelo produtor e compositor Hermínio Bello de Carvalho, aos 63 anos, enquanto cantava em uma roda de samba durante uma festa de Nossa Sra. da Glória, Clementina surge no cenário musical brasileiro em 1964, no espetáculo Rosa de Ouro, ao lado de Aracy Côrtes, Paulinho da Viola e Elton Medeiros.

A grande estrela do espetáculo era Aracy, mas a força de Clementina no palco – mulher, negra, velha, vestida de branco com turbante na cabeça – e de seu timbre primitivo que parecia ressuscitar as festas dos negros nas senzalas, repercutiram fortemente no público e Quelé explodiu para o Brasil e internacionalmente. Classe artística e a mídia da época estavam impactados com sua figura e curiosos para ver o que mais ela tinha para mostrar. Carismática, tornou-se uma espécie de grande mãe do grupo de artistas que frequentava, reunia pessoas a sua volta para cantar, contar fatos sobre sua vida, sobre seus antepassados e sobre os cantos que aprendera na infância.

Da periferia, Clementina foi para o centro do cenário cultural da época e tornou-se ícone da cultura negra. Era a representação da resistência cultural, era o que a cultura brasileira tinha de mais puro, o mais próximo de sua raiz e tradição. Era o velho e era o novo. Segundo Hermínio Bello de Carvalho, Clementina surge como um “elo antropológico que recompõe o tecido de uma cultura”.

Em sua carreira, Clementina gravou cinco LPs e participou em mais de 20 gravações de outros artistas de destaque nacional. No final de sua vida, com problemas sérios de saúde e com dificuldades de fazer shows, chegou a ter dificuldades financeiras.

Conhecida pelo grande público já na velhice, Rainha Quelé não foi descoberta, não foi produzida. Ela foi transportada em sua essência das rodas de samba da Penha até os palcos do mundo. Era genuína. Era a própria história do que cantava. Por isso, era única. Ainda hoje, em tempos de pasteurização da indústria cultural, quando escuto sua voz, seu timbre primitivo, estou certa de que não há de nascer outra como Clementina de Jesus.

Letícia é jornalista e também gosta de vadiar

“Clementina colocou o canto negro num patamar maravilhoso. Ela deu qualidade e prestígio a essa maneira de cantar.”
Elton Medeiros

“Não se pode viver uma vida no Brasil sem saber da existência da Clementina.”
João Bosco

“Clementina é tudo na minha vida. Quando vi Clementina cantando me decidi como sambista”.
Beth Carvalho

“Eu convivi com muitas pessoas ligadas às escolas de samba, aos blocos, mas eu mesmo não tinha consciência da importância de uma pessoa como a Clementina de Jesus”.
Paulinho da Viola

A imagem que ilustra a capa desta edição é do ilustrador Glen Batoca. O desenho recebeu Menção Honrosa no 39º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (2012). Para conhecer mais do seu trabalho, acesse o blog do artista:
www.glenbatoca.blogspot.com


Um comentário:

Anônimo disse...

Uma pena os jovens valencianos não conhecerem a vida artistica de nomes valencianos como Clementina e Rosinha de Valença. Eu mesmo, soube que Clementina era "nossa" a pouco tempo.
O artista faz a alegria do povo, de certo recebe por isso, mas morre esquecido, pobre e triste.