domingo, 3 de agosto de 2008

Cada um no seu quadrado





















por Adriana Facina (Obsevatório da Indústria Cultural/UFF)

Mas não me bate doutor

porque eu sou de batalha
eu acho que o senhor tá cometendo uma falha
se dançamos funk é porque somos funkeiros
da favela carioca flamenguistas brasileiros
apanhei do meu pai
apanhei da vida
apanhei da policia
apanhei da mídia
quem bate sim se acha certo
quem apanha tá errado
mas nem sempre meu senhor as coisas vão por esse lado
violência so gera violência irmão
quero paz quero festa funk é do povão
ja cansei de ser visto com descriminação
lá na comunidade funk é diversão
hj eu tô na parede ganhando uma geral
se eu cantasse outro estilo isso não seria igual
hoje eu tenho um pedido pra fazer pra Deus
pai olhai os irmãos filhas e filhos teus
prejuízo desemprego diferença social
classe alta bem classe baixa mal
porque tudo que acontece no Rio a culpa cai todinha
na conta dos funkeiros
e se um mar de rosas virar um mar de sangue
você pode ter certeza vão botar a culpa no funk

(“Não me bate doutor”, MCs Cidinho e Doca)

No domingo organizei uma atividade na área coletiva do meu prédio. Era uma roda de funk, com MCs jovens e da antiga, churrasco, futebol e muita conversa sobre a transformação do funk em movimento cultural. Além disso, também se discutiu a formação de uma associação dos profissionais e amigos do funk, que defenda os direitos desses artistas e promova uma diversidade musical maior naquilo que se ouve nas rádios e nos bailes, garantindo espaço para a poesia da favela se expressar.

Como nas rodas de samba, os MCs se revezaram cantando antigos sucessos e músicas novas, trazendo lágrimas e mexendo com a sensibilidade dos presentes, mesmo aqueles que não eram exatamente funkeiros e que estavam ali somente para conhecer o movimento. Nas músicas, histórias de amor, de vida, sofrimento e alegria. Nenhum palavrão foi dito, nada de apologia ao crime, nenhuma letra ofensiva ou que atentasse contra a moral e os bons costumes. O som estava num volume inferior ao da maioria das festinhas infantis que ocorrem no meu prédio. No entanto, no meio da festa, a síndica me chama no interfone e diz que iria cortar a luz da área porque ali no prédio não podia tocar funk.

Eu, tentando ser educada, perguntei se ali estava se cantando algo que ofendesse alguém, se havia palavrão ou coisa parecida. Argumentei que o volume do som era razoável, mas que poderia baixá-lo ainda mais. Mas ela foi definitiva: aqui não pode tocar funk! Aí eu tive que encrespar e afirmei que se a luz fosse desligada eu teria de processar o condomínio, pois caracterizaria discriminação.

Baixamos o volume, iniciamos o debate sobre o funk. Funkeiros e autoridades públicas falaram. Presentes estavam conselheiros de cultura de Niterói, vereadores e deputados com mandatos populares, imprensa, um representante do Ministério da Cultura, advogados, militantes do MST, universitários e muitos MCs e DJs de várias favelas e comunidades cariocas. Lemos o Manifesto do Movimento Funk é Cultura, que divulgo ao final desta página. Depois do debate, retornamos à roda de funk, baixando ainda mais o volume.

O preconceito travestido de síndica cortou a luz, continuamos a capela e descemos com o som pra dentro do salão de festas, espaço que eu também havia alugado e que, por ser fechado, incomoda menos aos moradores. Novamente a ameaça, feita às 5 horas da tarde, de cortar nossa luz. Entendam: o problema não era o volume do som, que estava baixo, mas sim o que era tocado e, sobretudo, por quem, pois nas festinhas do prédio toca Créu e outras coisas sem problema.

Aí veio o melhor: fui chamada para uma reunião de intimidação com a síndica, seu filho e mais duas moradoras. E elas começaram a dizer que ali não podia tocar funk, que era música de bandido, que o morro ia descer e coisas do tipo. Disse que a proibição estava na convenção do prédio. Eu argumentei que aquilo era inconstitucional e uma advogada de movimentos sociais e professora da UFF confirmou. Mas elas estavam descontroladas, ameaçadas pelo medo da favela que é ignorância que, por sua vez, é um tipo de cegueira. Os porteiros e faxineiros do prédio se sentiram humilhados com aquilo e um deles falou: “poxa, é do funk que eu gosto e curto que ela tá falando e eu não sou bandido”.

Filmamos tudo, até a síndica dizendo que aquilo ali era um lugar familiar e que esse tipo de gente não deveria estar ali. Quando ia saindo da salinha, com a frente reacionária antifunk tendo recuado diante da possibilidade de processo, uma senhora me disse: “minha filha, comemore seu aniversário aqui, só não toque funk!” Conselho dado: cada um no seu quadrado.

O pequeno episódio, que nem estragou a festa, serviu para explicitar o estrago que a criminalização da pobreza faz na nossa sociedade. Não tenho dúvidas de que, se eles pudessem, teriam chamado a polícia pra tirar aquela gente dali. Seguimos até 20h, todos cansados e felizes, cheios das esperanças e expectativas que um movimento coletivo traz. Muitos projetos: concursos de raps nas favelas, nova reunião no Circo Voador, redação do texto da lei federal definindo o funk como movimento cultural de caráter popular. Um sonho: a união das favelas. No meu quadrado, o início de um pequeno embate. Sim, vou entrar com uma ação contra a convenção do condomínio para garantir que o funk não sirva de cobertura da discriminação contra pretos, pobres e favelados.Manifesto do MOVIMENTO FUNK É CULTURA

O funk é hoje uma das maiores manifestações culturais de massa do nosso país e está diretamente relacionado aos estilos de vida e experiências da juventude de periferias e favelas. Para esta, além de diversão, o funk é também perspectiva de vida, pois assegura empregos direta e indiretamente, assim como o sonho de se ter um trabalho significativo e prazeiroso. Além disso, o funk promove algo raro em nossa sociedade atualmente que é a aproximação entre classes sociais diferentes, entre asfalto e favela, estabelecendo vínculos culturais muito importantes, sobretudo em tempos de criminalização da pobreza.

No entanto, apesar da indústria do funk movimentar grandes cifras e atingir milhões de pessoas, seus artistas e trabalhadores passam por uma série de dificuldades para reivindicarem seus direitos, são superexplorados, submetidos a contratos abusivos e, muitas vezes, roubados. O mais grave é que, sob o comando monopolizado de poucos empresários, a indústria funkeira tem uma dinâmica que suprime a diversidade das composições, estabelecendo uma espécie de censura no que diz respeito aos temas das músicas. Assim, no lugar da crítica social, a mesmice da chamada “putaria”, letras que têm como temática quase exclusiva a pornografia. Essa espécie de censura velada também vem de fora do movimento, com leis que criminalizam os bailes e impedimentos de realização de shows por ordens judiciais ou por vontade dos donos das casas de espetáculos.

A despeito disso, MCs e Djs continuam a compor a poesia da favela. Uma produção ampla e diversificada que hoje, por não ter espaço na grande mídia e nem nos bailes, vê seu potencial como meio de comunicação popular muito reduzido.

Para transformar essa realidade, é necessário que os profissionais do funk organizem uma associação que lute por seus direitos e também construa alternativas para a produção e difusão das músicas, contribuindo para sua profissionalização. Bailes comunitários em espaços diversos e mesmo nas ruas, redes de rádios e TVs comunitárias com programas voltados para o funk, produção e distribuição alternativa de CDs e DVDs dos artistas, concursos de rap são algumas das iniciativas que os profissionais do funk, fortalecidos e unidos, podem realizar. Com isso, será possível ampliar a diversidade da produção musical funkeira, fornecer alternativas para quem quiser entrar no mercado, além de assessoria jurídica e de imprensa, importantes para proteger os direitos e a imagem dos funkeiros.

O primeiro passo nesse processo é a união de todos, funkeiros e apoiadores, pela aprovação de uma lei federal que defina o funk como movimento cultural e musical de caráter popular. Reivindicar politicamente o funk como cultura nos fortalecerá enquanto coletivo para combatermos a estigmatização que sofremos e o poder arbitrário que, pela força do dinheiro ou da lei, busca silenciar a nossa voz.

Tamos juntos!

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