domingo, 3 de agosto de 2008

Crise de Preços e Agricultura Familiar

Crise de Preços e Agricultura Familiar

Da Via Campesina Internacional

Consumidores em todo o mundo assistiram o aumento dramático dos preços dos alimentos básicos, nos últimos meses, criando extremas dificuldades principalmente para as comunidades mais pobres. Há mais de um ano, o trigo dobrou de preço e o milho está quase 50% mais caro do que no ano anterior.

Entretanto, não existe uma crise de produção. As estatísticas mostram que a produção de grãos nunca foi tão alta como em 2007. Os preços estão aumentando por que parte da produção esta sendo desviada para os agrocombustíveis.

As reservas globais de alimento estão em seu nível mais baixo nos últimos 25 anos por causa da desregulamentação dos mercados pela OMC (Organização Mundial do Comércio) e de condições metereológicas extremas que afetaram as plantações de alguns dos países exportadores, como a Austrália.

Mas os preços estão subindo também porque as empresas financeiras fazem especulações sobre os alimentos dos povos, antecipando que os preços da agricultura irão continuar subindo num futuro próximo. A produção de alimentos, processamento e distribuição estão cada vez mais sob o controle das empresas transnacionais que monopolizam os mercados.

Tragédia dos agrocombustíveis: alimento para carros, não pessoas! Os agrocombustíveis (combustíveis produzidos de plantas, agricultura ou florestas) são apresentados como uma resposta ao mesmo tempo para o pico da produção de petróleo e também para o aquecimento global. Entretanto, muitos cientistas e instituições reconhecem hoje que os seus benefícios energéticos serão muito limitados e que os seus impactos ambientais e energéticos serão extremamente negativos. O mundo dos negócios, por sua vez, entrou na corrida para esse novo mercado que está competindo diretamente com as necessidades alimentares das pessoas.

O governo da Índia avalia plantar 14 milhões de hectares de terra com Jatropha. O Banco Interamericano de Desenvolvimento diz que o Brasil tem 120 milhões de hectares que poderia ser cultivado com grãos para a produção de agrocombustíveis. O lobby dos agrocombustíveis avalia que há 379 milhões de hectares disponíveis em 15 países africanos (2). A atual demanda por milho para a produção de etanol já representa 10% do consumo mundial, e esta elevando os preços mundiais.

Os agrocombustíveis industriais são um total absurdo: o seu desenvolvimento deveria ser detido e a produção agrícola deveria priorizar os alimentos.

Nenhuma agricultura se beneficia de preços altos.Os preços mais altos afetam os consumidores e, ao contrário do que era esperado, não beneficiam todos os produtores. Pecuaristas estão em crise por causa do aumento dos preços das rações, produtores de grãos enfrentam aumentos drásticos dos fertilizantes e os agricultores sem-terra e trabalhadores rurais não podem comprar alimentos.

Agricultores vendem a sua produção a um preço extremamente baixo, comparado com o preço que os consumidores pagam. A coordenação espanhola de agricultores e criadores de gado (COAG) calcula que os consumidores na Espanha pagam até 600% mais do que o produtor de alimentos recebe por seu trabalho.

O maior beneficiado com os altos preços agrícolas é a agroindústria empresarial e os grandes distribuidores, porque aumentam muito mais os preços dos alimentos do que deveriam. Os preços dos alimentos vão diminuir quando os preços agrícolas caírem novamente? As grandes empresas conseguem estocar grandes quantidades de alimentos e lançá-los no mercado quando os preços estão altos.

Os pequenos agricultores e consumidores necessitam preços justos e estáveis, e não a alta volatilidade atual. Eles não podem produzir se os preços estiverem muito baixos, um fato freqüente nas últimas décadas. E, portanto, necessitam de uma regulamentação do mercado, que seja o oposto das políticas da OMC.

Liberalização do comércio na agricultura gera crise. A atual crise revela que a liberalização do comércio agrícola gera fome e a pobreza. Os países estão se tornando extremamente dependentes dos mercados globais. Em 1992, agricultores da Indonésia produziram soja suficiente para suprir o mercado doméstico.

O tofu e o ‘tempeh` feitos a base de soja são uma parte importante da dieta diária em todo o arquipélago. Mas, seguindo a doutrina neoliberal, o país abriu as suas portas para os alimentos importados, permitindo que a soja barata dos Estados Unidos inundasse o mercado.

Isso destruiu a produção nacional. Hoje, 60% de toda a soja consumida na Indonésia é importada. Quando os preços da soja dos Estados Unidos escalaram vertiginosamente no mês de janeiro passado, isso levou a uma crise nacional, e os preços do ‘tempeh’ e tofu (a carne dos pobres) dobraram em poucas semanas. O mesmo cenário se aplica a muitos países, como por exemplo a produção de milho no México.

A desregulamentação e a privatização de mecanismos de proteção estão também contribuindo para a atual crise. As reservas nacionais de alimentos estão sendo privatizadas e passaram a ser administradas como empresas transnacionais. Eles agem como especuladores, em de proteger os agricultores e consumidores. Da mesma forma, os mecanismos de controle de preços estão sendo desmantelados em todo o mundo, como parte do pacote das políticas neoliberais, expondo assim agricultores e consumidores a uma extrema volatilidade de preços.

É hora da Soberania Alimentar!

Devido ao esperado crescimento da população mundial até 2050 e a necessidade de se lidar com o aquecimento global, o mundo terá de produzir mais alimentos no futuro. Os agricultores podem enfrentar esse desafio, como já fizeram no passado. Apesar de a população ter dobrado nos últimos 50 anos, mesmo assim os agricultores aumentaram a produção de grãos ainda mais rápido.

A Via Campesina acredita que para proteger a sobrevivência, o emprego, a saúde das pessoas e o ambiente, o alimento tem de continuar nas mãos de agricultores sustentáveis em pequena escala e não pode ser deixada sob o controle das grandes empresas do agronegócio ou redes de supermercados.

Os transgênicos e a agricultura industrial não oferecem alimentos saudáveis e irão deteriorar o ambiente ainda mais. Por exemplo, a “Nova Revolução Verde”, impulsionada na África (novas sementes, fertilizantes, e irrigação em grande escala), não irá resolver a crise de alimentos. Na verdade irá aprofundá-la.

Por outro lado, uma pesquisa recente revela que a pequena agricultura orgânica é pelo menos tão produtiva quanto à agricultura convencional, e algumas estimativas sugerem até que a produção global de alimentos poderia aumentar 50% com agricultura orgânica.
Para evitar uma grande crise de alimentos, os governos e as instituições públicas tem de adotar políticas específicas, direcionadas a proteger a produção da energia mais importante no mundo: o alimento!

Os governos têm de desenvolver, promover e proteger a produção local para que sejam menos dependentes dos preços mundiais de alimentos. Isso implica o direito de qualquer país ou união impedir qualquer forma de ‘dumping’ de alimentos. Mas também de estabelecer um mecanismo de administração de suprimentos, tais como estoques e preços base garantidos, para que se crie condições estáveis aos produtores.

Segundo Henry Saragih, coordenador geral da Via Campesina e diretor do Sindicato dos Camponeses da Indonésia, “os agricultores necessitam terra para produzir alimentos para a sua comunidade e o seu país. Chegou a hora de implementar uma reforma agrária genuína que permita que agricultores familiares alimentem o mundo”.

Ibrahim Coulibaly, presidente da organização Coordenação Nacional de Camponeses de Mali, disse que “o aumento das importações de alimentos somente irá nos deixar mais dependentes das flutuações brutais do mercado mundial.”

A Via Campesina acredita que a solução da atual crise nos preço dos alimentos reside na soberania alimentar, que significa o direito dos povos a um alimento saudável e culturalmente adequado, produzido ecologicamente e com métodos sustentáveis, por meio de ações dos seus governos para definir as políticas alimentares e agrícolas de seus países, sem danificar a agricultura de outros países.

Assim, se coloca as aspirações e necessidades dos que produzem, distribuem e consomem alimentos no centro do sistema e das políticas, e não as demandas dos mercados e das corporações. A soberania alimentar prioriza as economias e mercados locais e nacionais e fortalece os camponeses, a agricultura familiar e a produção de alimentos.


VIA CAMPESINA INTERNACIONAL
Roma, 14 de fevereiro de 2008


Visitem: caminhocomunista.blogspot.com

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