quinta-feira, 20 de novembro de 2008

GLÓRIA A TODAS AS LUTAS INGLÓRIAS!

Luiz Carlos da Vila, compositor recém-falecido, nos deixou, entre tantos sambas de bamba, de singular lirismo, esta história reveladora: "um dia sentei num restaurante acompanhado de uma amiga, também negra, e pedimos uma garrafa de vinho. O garçom, meio desconcertado e tentando ser gentil, nos avisou que aquele vinho era muito caro. Olhei, agradeci e falei com ele: então eu quero duas garrafas. Meu objetivo não era tirar onda, pois não é a minha, mas mostrar para ele que um negro pode tomar uma garrafa de vinho mesmo que seja cara. Essa coisa do preconceito é tão complicada que os negros reproduzem o discurso dos brancos. A polícia, então, adora criar constrangimento quando o cara é da mesma cor. Forjou-se nesse país o estereótipo de que o negro é vagabundo, é desocupado, é ladrão e uma ameaça. Precisamos evoluir nesse sentido. Um país que discrimina, que segrega, é um país muito pobre."

De nada adianta ser uma República se não abolirmos definitivamente deste País a discriminação e a escravidão, que persistem de muitas formas. Como onde há opressão há resistência, nossa história registra também seguidas lutas do povo contra a exploração e o racismo. João Cândido, o Almirante Negro, líder da revolta contra a chibata, que enfim terá como homenagem algo mais que "as pedras pisadas do cais" na Praça XV, no Rio, é um exemplo.

Mas ainda há um longo caminho pela frente, ainda que nesses tempos de Obama presidente dos Estados Unidos. Pensando nesta Semana da Consciência Negra, observei alguns números do IBGE. No quesito autodeclaração de raça ou etnia, apenas 5,9% da nossa população se declara pretos - nem falam em negros. E, como 41,4% se declaram pardos, então 47,3% da nossa gente assume a condição, da qual eu também me orgulho, de não-branco. Mas poucos afirmam a sua negritude. E, dos 52% que se autodeclaram brancos, há fenômenos como o Ronaldo, o ex-centroavante da Seleção Brasileira que, em maio de 2005, declarou à Folha de S. Paulo que era branco. Por que será que um jovem tão cortês, tão bem-sucedido na sua habilidade de jogar futebol; por que ele, "o Fenômeno", dá essa declaração fenomenal? Ora, porque vivemos sob a pressão cultural e ideológica do embranquecimento. E isso que muitos queremos negar.
Tão logo se proclamou a República, há mais de 100 anos, surgiu no Brasil uma classe média e uma burguesia negra muito viçosas. Machado de Assis, por exemplo, destacou-se como escritor; Francisco de Paula, como editor. Lima Barreto, talentoso e questionador, não teve a mesma sorte...

Em alguns setores os negros conseguiram ascender na escala social, mas esse segmento não se cristalizou. Para os negros que se afirmaram após a abolição havia apenas dois caminhos: ou o embranquecimento, via casamento com famílias brancas, para manter o status, ou a exclusão reiterada, apesar do relativo sucesso econômico. Isso é muito grave.

Meu querido amigo, o historiador negro Joel Rufino dos Santos, diz que até no futebol se percebe essa discriminação. A maioria dos craques da Seleção Brasileira é negra, mas poucos árbitros de futebol, suas senhorias, são negros. E técnicos de futebol? Quase nenhum. Cartolas dirigentes, então, podemos contá-los nos dedos de uma mão. Por quê? Porque ao negro no Brasil ainda não é dado o direito da direção, da representação, da expressão. Aliás, esse direito não pode nem deve ser dado, ele tem de ser conquistado. Mas nós, ainda em minoria, vamos conquistando-o a cada dia.

O Brasil também precisa enfrentar outro problema: a discriminação sutil. Assim como temos uma democracia banal, formal, que não se traduziu ainda em igualdade social e em igualdade de oportunidades, convivemos também com uma discriminação à moda nacional, à brasileira, mascarada pela falácia de uma igualdade que não existe, apesar do discurso recorrente. E ainda dizem que o Brasil é diferente dos Estados Unidos, que acaba de eleger o filho de um queniano para o comando da República. Devemos pensar se a discriminação e o racismo lá, que são mais ostensivos, não provocaram reação mais efetiva do discriminado, que pôde se organizar e assumir de fato a sua luta, com Martin Luther King, Malcom X e tantos outros, à frente da defesa dos direitos civis. No Brasil, o país do jeitinho, a falácia que repete que não há preconceito porque "o negro tem alma branca", porque "o negro conhece o seu lugar", porque não há conflito. Mentira! E uma mentira muitas vezes oficial.

Mas estamos avançando, pouco a pouco, em direção à superação dessa discriminação disfarçada, não apenas manifestando o ódio contra essa discriminação odiosa, mas sobretudo afirmando nossos valores, nossas culturas - no plural, sim - , afirmando nossa religiosidade tão cheia de seiva e de vida, muito melhor do que aquela herança medieval da colonização ocidental lusa que parte da racionalidade absoluta. Menos mal que neste país Nossa Senhora Aparecida seja negra e isso esteja sendo assumido até por segmentos brancos da população.

Já estamos trazendo à tona a verdade que o Brasil precisa conhecer, a verdade que precisa chegar às nossas crianças e aos nossos jovens. Com a sua presença tão bonita, tão afirmada em colares, pulseiras, roupas, expressão, alma e coração, nossa afro-descendência diz que o Brasil negro não vai se render; vai, isto sim, se afirmar cada vez mais.

Caetano Veloso, ao compor uma música inspirada numa obra de Jorge Amado, criou versos definitivos para a revolução cultural da afirmação da nossa belíssima africanidade: "Quem descobriu o Brasil foi o negro que viu a crueldade bem de frente, e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente!".

Chico Alencar

2 comentários:

Anônimo disse...

Bom texto e representativo do dia da consciência negra. Mas eu tenho uma discordância em um ponto: a idéia de que o racismo brasileiro é pior do que o dos EUA porque lá eles são diretos e aqui se dá através de uma cortina de fumaça que o esconde.

Eu acho que o racismo no Brasil não é escancarado, simplesmente porque a cor da pele não é suficiente para espancarmos alguém na rua (tirando algumas exceções, claro), mas apenas rir (com brincadeiras idiotas), não querer ter realções íntimas e, na pior das hipóteses, não querer ter nenhum tipo de relação.

Bom, na minha opinião, se fosse realmente possível medir a qualidade do preconceito, com certeza, consideraria o preconceito brasileiro melhor do que o dos EUA. Afinal, eu preferiria muito mais ser zombado e me manter afastado das pessoas do que correr sempre o risco de ser espancado na rua.

OBS: não quis entrar no mérito da violência da polícia brasileira frente aos nossos negros, pois neste tipo de preconceito se acrescenta o social e aí, com certeza, ser preto e ser pobre ao mesmo tempo aumenta o nível de preconceito em relação a pessoa que é só pobre (ou negra e rica).

Como dizem os Racionais: "Preto e branco pobre se parecem, mas não são iguais".

Anônimo disse...

A questão que foi colocada no texto é que o preconceito como é nos EUA permite resistência aglutine mais pessoas na luta do que no Brasil. Pois lá como é mais agressivo é mais perceptível também. Se lá é melhor ou pior, isso´eu não sei e, como você disse, nem é possível de fato medir.