SÃO PAULO (já deu) – O Pinheirinho é um bairro de São José dos Campos, uma das cidades mais ricas do Brasil. Aparece em 19° lugar no ranking nacional do PIB por municípios, à frente de nada menos que 18 capitais estaduais (Goiânia, Vitória, Belém, São Luís, Campo Grande, Natal, Maceió, Cuiabá, Teresina, João Pessoa, Florianópolis, Aracaju, Porto Velho, Macapá, Boa Vista, Porto Velho, Rio Branco e Palmas).
Nessa relação, aparecem diante de São José as dez capitais mais ricas do país e apenas duas não-capitais que não fazem parte de nenhuma macrorregião metropolitana: Campinas e Santos. É um polo tecnológico de 640 mil habitantes, a sétima maior cidade do Estado de São Paulo (segunda maior cidade do interior do Brasil), com o 11° melhor IDH estadual.
Quem passa pela Via Dutra cortando o Vale do Paraíba nota a presença, em São José, de indústrias do porte de General Motors, Johnson & Johnson, Panasonic, Monsanto e Embraer, entre outras. É sede, igualmente, do INPE, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o que faz dela o maior centro de pesquisas aeroespaciais do Brasil. Lá fica o ITA, Instituto Tecnológico de Aeronáutica, que tem a fama de realizar o vestibular mais difícil do país.
Apesar disso, São José tem muita gente pobre. Que não tem onde morar, vive no subemprego, sofre das mazelas que todos conhecem. Em 2004, alguns desses pobres começaram a montar seus barracos num terreno de 1,3 milhão de metros quadrados que pertencia, sabe-se lá comprada como e quando, a uma certa Selecta, holding das empresas do especulador libanês radicado no Brasil Naji Nahas.
Nahas foi acusado, no fim dos anos 80, de quebrar a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Virou símbolo da infâmia que é o mercado financeiro, esse monstro invisível que nada produz de útil ou relevante, exceto lucros para alguns às custas dos prejuízos de muitos. Foi condenado mais de uma vez, depois inocentado, e mais recentemente acusado novamente de crimes financeiros depois das investigações da Polícia Federal na conhecida Operação Satiagraha. Preso pela última vez em 2008, confesso que não sei se está solto.
A Selecta quebrou depois das travessuras de Nahas (tem tanta gente que acha essas coisas engraçadinhas e sorri ao comentar suas peripécias…) e o terreno de 1,3 milhão de metros quadrados passou a integrar a massa falida da empresa. Claro que lá em 2004 as primeiras pessoas que começaram a montar seus barracos na área, conhecida como Pinheirinho, não se preocupavam demais com Nahas, com a Bolsa, com as especulações do mundo financeiro. Procuravam um lugar para morar, no más.
Oito anos depois, o Pinheirinho virou um bairro onde, segundo a Prefeitura de São José, vivem 1.600 famílias e cerca de 6 mil pessoas. Ao longo desses oito anos, advogados de Nahas se divertiram com o processo de falência da Selecta e alguns meses atrás saiu uma decisão a um pedido de reintegração de posse da área. Recurso vai, recurso vem, na semana passada a coisa foi evoluindo nos tribunais até que um juiz determinou que os moradores fossem expulsos do Pinheirinho para que o terreno voltasse para o seleto Naji Nahas. Consta que a Prefeitura é credora da Selecta. Portanto, teria interesse na desocupação do terreno para que ele possa, sei lá, ser vendido para que a dívida seja quitada.
A batalha de papéis, que tanto excita magistrados, advogados, desembargadores e similares, chegou à Justiça Federal, que suspendeu a reintegração de posse através de uma liminar. Mas uma juíza estadual mandou que a operação fosse adiante.
As reações à decisão da juíza estadual entre os que se dizem defensores do Estado de Direito mostram sem retoques a pobreza moral do ser humano. Discutem-se pormenores técnicos, se a Justiça Federal pode se opor à Estadual, se a autonomia de uma foi ferida pela outra, se a liminar pode ser derrubada, se o tribunal pode emitir uma contraordem de madrugada ou se precisa esperar o sol nascer, uma punhetação insuportável. Em nenhum momento essa gente se atém ao que é essencial: as pessoas que vivem no Pinheirinho. Como são pobres, pretos e putas, que se fodam. O que interessa é a discussão que deve deixar homenzinhos de toga de pintinho duro e mulherzinhas idem molhadinhas diante de seu profundo conhecimento acadêmico.
Ontem, domingo de manhã, um contingente de 1,8 mil policiais militares armados chegou ao Pinheirinho. A Prefeitura de São José dos Campos, comandada pelo tucano Eduardo Cury, determinou a desocupação da área. A ordem é expulsar as seis mil pessoas do Pinheirinho. O governador do Estado, Geraldo Alckmin, usa o discurso de que “decisão da Justiça não se discute, se cumpre”. Que é a maior muleta dos amorais que têm o poder de fazer alguma coisa, mas optam pela omissão mesmo diante de casos como esse — que dão trabalho, exigem tomada de posição, podem representar algum ônus político quando da possibilidade de enfrentamento entre poderes.
Segundo a OAB, houve mortes na invasão policial. A PM, o Estado e a Prefeitura não confirmam. Um jovem blogueiro me escreveu para dizer que sua mãe, que trabalha num hospital da região, relatou conversas entre médicos que falam de pelo menos quatro pessoas mortas pela ação de guerra da polícia paulista — que tem agido com vigor semelhante em episódios como o da higienização da Cracolândia, ou na invasão da Reitoria da USP por estudantes contrários à presença da PM no campus e também à gestão do atual reitor, chamado pela burlesca revista “Veja” de “xerifão da USP”. (Chique, não? Antigamente, era orgulho de qualquer reitor ser chamado de “grande cientista”, “brilhante pensador”, “professor talentoso”. Hoje, o cara é chamado de xerife e fica contente. Faltou posar para uma foto com um Colt no coldre e estrela polida no peito. Se é que não o fez.)
Os desabrigados estão sem chão. A Prefeitura armou barracas sobre a lama, não dá comida a ninguém, não oferece nenhuma opção decente de moradia, abrigo, futuro. Estamos falando de 6 mil almas, entre elas crianças, idosos, homens e mulheres que trabalham. E também, certamente, de criminosos, desocupados, traficantes, proxenetas e cafetinas — toda a malta que se pode encontrar no Pinheirinho, no Soho, em Nova York, nos Jardins, em São Paulo, ou no Quartier Latin, em Paris.
Os pertences dessas 6 mil pessoas continuam dentro de suas casas. São TVs de 20 polegadas, fogões de quatro bocas, beliches comprados nas Casas Bahia, geladeiras enferrujadas, máquinas de lavar que fazem barulho e vivem quebrando, colchões mofados, gaiolas com passarinhos, garrafas térmicas, panelas amassadas, bujões de gás, roupas, armarinhos de cozinha e banheiro, guarda-roupas, garfos, facas e colheres, copos de requeijão, chuveiros elétricos, cadernos escolares, mochilas de crianças, bonecas sem um braço ou um olho, carrinhos com rodas faltantes, videogames velhos doados pelos filhos da patroa. Não se tem notícia de algum planejamento por parte do poder público para que a vida dessa gente toda, representada pelo pouco que tem, seja transferida para algum lugar onde haja um teto, esgoto, água corrente, eletricidade. Muitos dormem em ginásios de esportes, outros em salões paroquiais.
São 6 mil pessoas da 19ª cidade mais rica do país que ontem de manhã foram enxotadas na porrada de suas casas e barracos, montados num terreno de 1,3 milhão de metros quadrados reivindicado pela massa falida da empresa de um especulador condenado por crimes financeiros, cujo pleito foi atendido pela Justiça e prontamente executado pela Prefeitura e pela PM. Elas não têm para onde ir.
Há quem argumente que propriedade privada é sagrada, que os moradores do Pinheirinho não passam de “invasores” que tomaram o que não era deles. Estiveram lá por oito anos e o poder público, os que ocuparam os gabinetes da administração de São José dos Campos, jamais se importou com eles. Que se fodam, são pretos, pobres e putas que incomodam nossa sociedade branca e cheirosa, maloqueiros e favelados que deveriam “ser devolvidos em pau-de-arara ao lugar de onde vieram”, como escreveu um parvo no Twitter cujo nome, infelizmente, não anotei.
O Estado de São Paulo é um feudo curioso. No Litoral Norte, há algumas dezenas de condomínios de alto padrão e casas de luxo erguidas em áreas discutíveis, resultado de invasões de terrenos públicos ou de propriedade duvidosa, grilagem cabocla de grandessíssimo nível, cujos empreendimentos ferem legislação ambiental e desrespeitam normas de construção. Algo que se verifica no Brasil inteiro, na verdade. Dia desses a TV Globo mostrou como essa gente é desenvolta quando se trata de se apropriar do que é público para exibir em festinhas privadas.
Não se tem notícia, nos casos dessas invasões promovidas por gente dourada e montada na grana, de reintegrações de posse ordenadas por juízes ou juízas preocupados com o Estado de Direito, ou de prefeitos que convocam a PM para dar tiro de bala de borracha em menininhas que frequentam os clubes noturnos de Maresias, ou ainda lançar bombas de efeito moral pelos janelões de vidro voltados para a placidez do oceano Atlântico.
Bombas de efeito moral não funcionam para quem não tem moral alguma.
Retirado do Blog do Flavio Gomes (http://flaviogomes.warmup.com.br/2012/01/pinheirinho/)
Um comentário:
Editorial Portal Vermelho- postado via facebook. Vai o trechinho:
“Como um Estado democrático tolera uma coisa dessas?”, questiona o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (confira aqui). A questão é: de que Estado estamos falando?"
"Enquanto a sociedade for fundamentada no capitalismo, haverá conflitos entre as classes, a dominante e a dominada. Democrática e progressista, nossa Constituição de 1988 garante o direito à luta e é isso que o povo está fazendo: no Pinheirinho, nas manifestações contra o aumento da passagem em Teresina e em Pernambuco, contra a higienização promovida na cracolândia paulista. Em um Estado democrático, lutar é um direito de todos. Sem ele, o povo estará escravizado."
Retirei dois parágrafos, mas quem quiser ler na íntegra basta entrar no Portal Vermelho.
Eu fico perperplexa: um misto de tristeza com indignação!
O fato é que o capitalismo a que tudo indica entra na sua fase mais feroz até então experimentada por todos nós seres vivos e seres humanos. O cenário só tende a se agravar. Não sou uma pessimista- por mais que “eu tente”, eu não consigo-, talvez minha história pessoal (superação e resistência), ou seja, chegar até aqui "inteira", me dê à convicção de que é possível construir outra realidade muito além daquela que se estruturou em nossa mente, nos anos mais pueris da nossa existência, e de seus contornos sombrios em nossa Psiquê. Isto sem citar os valores pequenos burgueses, típico da classe média em que nasci. Extraindo, este exemplo, da esfera micro para a esfera macro, é possível, SIM, desconstruir para REconstruir. Refiro-me agora ao paradigma do Capital, a nós impostos, e que perpassa nosso inconsciente coletivo. A mudança cultural, de longe é a mais difícil a ser atingida, e que, por certo, não acontece do dia para noite. O capitalismo não é só um sistema econômico, até por que ele não se sustentaria se não houvesse todo um arcabouço cultural que o alimente. Por isso que implantar o socialismo real exige de nós uma mudança muito maior e desafiante: mudança de postura. Não basta só se revoltar com as atrocidades, se nossa conduta e hábitos nos levam a alimentar tudo isso aí colocado. É preciso ter coerência. Não é fácil, mas é possível, e o maravilhoso é quando nos apercebemos de que não estamos sós, literalmente. A nível de indivíduo temos a análise, que para mim será sempre a profissão do presente, pelo menos enquanto humanos houver. Por que falo isso? Por que não se consegue perpetrar nenhuma ação PRÓ-ATIVA de modo constante, se por dentro nos encontramos desencontrados, perdidos. A revolução tem que começar dentro, e à medida que ela se faça, se expandirá “além nós”. Fragilizados internamente, viramos objetos de consumo(de toda ordem e custo), refugo do sistema. E como o sabemos, ele não está aqui vendendo saúde. Saúde é conquista: é equilíbrio, harmonia entre os preceitos que carregamos e os princípios que nos deram forma. Enfim, é estarmos em paz conosco e com o mundo que nos rodeia. Antes que Um/O engraçadinho venha acusar-me de estar aqui a propor lavagem cerebral (quanto juízo de valor!), me detive a escrever desta maneira, e a me colocar como exemplo, apenas como forma de ratificar a ideia defendida por muitos estudiosos e militantes sobre o tema, ao afirmar que o maior desfio a ser enfrentado por nós na implementação do Sistema Socialismo não se tratará de mudar a ordem econômica em si, mas, sobretudo, de uma mudança cultural e de valores. Vou terminar com um trechinho de uma música de Lenine que andei ouvindo muito nos últimos dias (questões de fundo pessoal), mas que serve ao meu intuito:
“O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós..." (Paciência)
PS.: Muitos "Pinheirinhos" ainda estão por vir.
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