O bonde da contemporaneidade
Com a proposta de emenda constitucional para garantir o casamento civil igualitário e o apoio da sociedade, é possível retirar gays e lésbicas da condição de pessoas de segunda categoria
Por Jean Wyllys
Ilustrações Débora Vaz
No Dia Internacional do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), comemorado 28 de junho, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República anunciou pesquisa que registra cerca de 280 assassinatos relacionados à homofobia em 2011. Juntamente com a ocorrência de quase sete mil denúncias de violações aos direitos humanos desse segmento da população durante o mesmo período, esses números fazem do Brasil o primeiro no ranking mundial de crimes de ódio motivados por homofobia. A estatística – imprecisa, diga-se de passagem - expressa o ódio que abate hoje muitos homossexuais no Brasil e viola outros tantos direitos.
A homofobia se expressa letalmente por meio das agressões dos assassinatos, mas também, e sobretudo, por meio da violação de direitos. Ela vigora em diferentes instituições e espaços, da família, passando pelas escolas e igrejas, que são reprodutoras da homofobia, e até mesmo no Congresso Nacional, onde vários deputados se organizam politicamente pra impedir que a cidadania avance e contemple os LGBT. Nós, LGBT, somos alijados de mais de 70 direitos - somos cidadãos de segunda categoria.
O que muita gente não entende – e isso fica bem claro com as abordagens que recebo de pessoas perguntando o porquê de nos preocuparmos tanto com “um número tão baixo” de mortes, sendo que milhares de heterossexuais são assassinados anualmente – é que, sim, cada um/a de nós está sujeito à violência urbana, mas há um tipo de crime de ódio que assola somente a comunidade LGBT (e principalmente as travestis, as que mais sofrem com a transfobia e discriminação). Esse tipo de crime motivado por ódio é, por exemplo, o que faz com que um assassino arranque o falo de sua vítima e o enfie em sua boca enquanto a esfaqueia mais de 50 vezes. Quando uma pessoa pratica esse tipo de crime, não está tentando atingir e aniquilar somente sua vítima, mas sim uma comunidade inteira.
Direitos iguais?
Apesar de hoje existir a tipificação do crime específico de racismo, ainda não há legislação que puna a homofobia. No Brasil, a violência não é institucionalizada, o Estado não pune a homossexualidade como em outros países. Aqui, as mortes acontecem no vácuo da legalidade. Estamos carentes de políticas públicas que instruam e construam nas pessoas um espírito republicano. Precisamos de engajamento dos meios informais de educação no sentido de ensinar à população que você pode até discordar de determinados modos de vida, mas você não pode negar direitos.
O mundo mudou, as famílias mudaram, e as leis têm obrigação social de acompanhar essa evolução, mas a sociedade brasileira não reconhece as relações homoafetivas como dignas e geradoras de direito. Algumas conquistas no último ano marcaram um avanço na garantia de direitos da população LGBT, mas a comunidade LGBT apresenta diversas demandas que estão sendo ignoradas pelo Poder Público e a homofobia está implícita na ordem legal, uma vez que o ordenamento jurídico não concede os mesmos direitos a todas as pessoas sem distinção de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.
Em 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Em maio deste ano, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aprovou projeto de lei da senadora Marta Suplicy (PT-SP) que introduz no Código Civil a união estável entre casais homossexuais e a possibilidade da conversão dessa união em casamento civil.
Criminalização da homofobia
No esforço de combater a homofobia, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 122/2006 que visa criminalizar a homofobia. O projeto altera o Código Penal para que este defina e puna os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Desde o início, o projeto é objeto de divergências entre a bancada cristã/evangélica fundamentalista e os militantes da causa. O projeto já passou pela Câmara dos Deputados e aguarda votação do Senado. No entanto, as possibilidades de aprovação em ambas as casas e promulgação do projeto continuam parecendo mínimas.
É claro que a criminalização da homofobia, que o PLC-122 propõe é importante, justa e necessária, mas, em todo o mundo, a militância LGBT entendeu que a pauta precisava ser trocada e que, mais modificador da sociedade do que a criminalização da homofobia é o reconhecimento do casamento civil igualitário, que garante a todas e todos os mesmos direitos com os mesmos nomes.
Em matéria de Direitos Humanos, mais importante que pensar em pessoas encarceradas e punições severas, seria pensar em pessoas livres para amar e livres de violência. O Estado brasileiro deve, antes de punir os homofóbicos, ser um exemplo de respeito às diferenças e de garantia dos princípios fundamentais sem qualquer discriminação no acesso ao direito.
Casamento civil igualitário
A comunidade LGBT paga impostos, vota, contribui para a Previdência Social e declara imposto de renda como todos os outros cidadãos do país. No entanto, esses mesmos cidadãos, iguais aos outros nos deveres civis, não podem constituir família com a pessoa amada, não podem adotar filhos, não podem incluir seu companheiro como dependente no imposto de renda, não podem constituir plano de saúde conjunto e nem somar a renda do companheiro para financiar uma casa própria.
Por isso estou propondo ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para garantir o casamento civil igualitário. O texto proposto, que tem a deputada Erika Kokay (PT-DF) como coautora, altera o artigo 266 da Constituição Federal para a seguinte redação:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1.º O casamento é civil e é gratuita sua celebração. Ele será realizado entre duas pessoas e, em qualquer caso, terá os mesmos requisitos e efeitos sejam os cônjuges do mesmo ou de diferente sexo.
§ 2.º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3.º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre duas pessoas, sejam do mesmo ou de diferente sexo, como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
O objetivo maior de desqualificação pública da homofobia deve começar pela concessão dos mesmos direitos, com os mesmos nomes para todos. O objetivo da PEC é contribuir para uma mudança sociocultural na sociedade que altere como a sociedade encara e lida com a homossexualidade – que nada mais é do que mais uma expressão da orientação sexual de um indivíduo – e retirar gays e lésbicas da condição de pessoas de segunda categoria.
A sociedade já começou a entender a importância que o respeito à igualdade e a dignidade das pessoas LGBT e de outras minorias tem para uma sociedade democrática e, com o pontapé do meu mandato, lançou uma campanha que busca expressar e mobilizar o apoio de diversos setores da sociedade brasileira à PEC. A campanha será lançada em vários estados e conta com o apoio de artistas como Arlete Salles, Chico Buarque, Caetano Veloso, Zélia Duncan, Ivan Lins, Wanessa, Mônica Martelli, Mariana Ximenes, Ney Matogrosso, MV Bill, Alexandre Nero, Gutta Stresser, Sérgio Loroza, Tuca Andrada, Cláudio Lins, Alexandra di Calafiori, Preta Gil, Maria Ribeiro, Fabiula Nascimento, Rita Ribeiro, Sandra de Sá, Jusara Silveira, Mariana de Morais, Neville d’Almeida, Luiz Carlos Lacerda, Robert Guimarães, Fabiana Cozza e Lan Lan. Todos participaram da campanha de forma gratuita e solidária.
Esta campanha é de todas e todos, e esperamos contar com a participação e o compromisso de líderes de todos os partidos para construirmos juntos no Congresso uma coalizão pela igualdade que permita a aprovação da PEC. Nós aprendemos muito com o processo nos países onde o casamento igualitário foi aprovado e o debate em cada um deles mostrou que, quando o tema deixa de ser silenciado, os argumentos contra a igualdade caem. Vamos vencer essa luta que fará do Brasil um país melhor, mais justo e mais civilizado. Como disse o cineasta Luiz Carlos Lacerda, que participa da campanha, “o Brasil não pode perder o bonde da contemporaneidade”.
Jean é deputado federal pelo PSOL-RJ e escritor
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